1 de agosto de 2018

Uberlândia - Parte 2

                                                                                                                                                        ilustração @karinakuschnir


A Uberlândia é vária — e não existe nada que não exista. Não existem, portanto, os motoristas que não oferecem pasteis de nata. Não existem também os que não recitam versos ou caiam nos fados. E não existem em Santo Amaro os motoristas de Uber que nunca moraram em Massachusetts.

— O senhor Joaquim é português? Tem um jeito de falar diferente...

— Morei anos em Massachusetts, senhor Juva. Anos...

— Ah... Em... — e foi aí que percebi que não conseguia acertar a pronúncia daquilo...

— Massachusetts, senhor Juva.

E ele não foi o único a morar naquele estado. Em dois dias peguei três motoristas que também haviam morado em Massachusetts por pelo menos nove anos. A maluquice não para aí. Nesses dois dias fui perseguido três vezes pelo senhor Nuno, que ainda por cima me acusou a mim de ser eu o perseguidor. Na primeira vez, em Cascais; na segunda, em Santo Amaro; na terceira, em Lisboa. 

— O senhor Juva de novo? O senhor desculpe, mas está a me perseguir...

E o Nuno, na primeira viagem sujeito faladeiro e risonho, passou a terceira viagem em silêncio. Quem, afinal, estava a perseguir quem? E de vez em quando nossos olhares esbarravam pelo retrovisor, mutuamente desconfiados.

E há, claro, os poetas. Há sempre um poeta à espreita na curva de uma ruela lisboeta...

— Senhor Amando Pessoa?

— Senhor Juva? Para onde vamos?

— O senhor Amando pode me chamar somente de Juva. A propósito, que nome interessante o seu...

— Obrigado. Também pode me chamar de Amando. Mas o... Juva falou do meu nome... Não é lá muito fácil uma pessoa chamar-se “Amando Pessoa”, ainda mais em Lisboa...

— É verdade...

— Pois. O Juva percebeu, não é? Além de rimar com “Fernando”, ainda tenho de carregar este “Pessoa” pela vida afora...

— É verdade...

— Não haveria problema se eu fosse médico, advogado, engenheiro, psicólogo, físico ou qualquer coisa, menos... — e ele parou de falar e olhou pra trás.

— Não me diga que o Amando é poeta...

— Pois aí é que está! É muito peso nos ombros, senhor Juva... Digo, Juva. E ainda fiz a besteira de publicar um livro. E as pessoas amigas iam às livrarias e pediam pelo livro de versos do Pessoa. E tinham de explicar aos livreiros, sempre confusos os gajos, que não era o Pessôôôa, mas o Pessoa...

— O Amando...

— Pois. O Amando... Isto é bué desagradável, o Juva imagine... É um fardo... Não tenho ambições nem desejos. Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho. O Juva percebe?

— Seria pior se o Amando se chamasse Fernando...

— E foi por um triz! A minha mãe amava o Fernando, e queria Fernando, mas o meu pai disse que não, que aquilo já era demais, e para agradar à sua senhora sugeriu, como compensação, Amando. O poeta é mesmo um sofredor. Ai, Jesus...

— De fato, é complicado...

— Complicado e triste... Resultado número um: acabei detestando Fernando Pessoa, o que é bué irônico para um sujeito que se chama “Amando Pessoa”...

— De fato, é irônico...

— Resultado número dois: acabei detestando ainda mais o “Amando” do que o “Pessoa”. E hoje só assino “Pessoa”. Mas não sei se foi uma boa ideia... O Juva percebe, não?

— De fato, não foi uma boa ideia...

— Ó, senhor Juva... Já não sei quantas almas tenho... O Fernando destruiu a minha carreira... Já agora... Gostaria de ouvir uns versos meus?


*

Citações e paráfrases de poemas do Pessoa (o Fernando...):

“O guardador de rebanhos”, “Autopsicografia”, “Não sei quantas almas tenho”

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