“Quando morre uma mosca nascem mil formigas: No sobrado, à volta da cama, aproveitando as réstias de sol e o aconchego do quarto, as moscas passeiam. Magras, pressentindo o inverno que se avizinha, ensaiam de quando em quando um voo curto e recomeçam a girar pelo assoalho. Sabem muito bem que têm os dias contados. Mas, criminosas encartadas em pátio de prisão, circulam num espaço limitado, fingindo que recuperam forças, disfarçando com toda a maldade que as distingue e com todo o seu sarcasmo e cobardia. Chegam a perseguir-se e fazem amor. Condenadas e tudo, fazem amor. Muitas ainda hão-de resistir até amanhã, para se banquetearem com o sangue fresco das aves da lagoa, e depois cairão de patas para o ar num canto, girando nas asas, espojando-se como se brincassem e, no entanto, já assassinadas pelo inverno. E logo aparecerão brigadas de formigas para as arrastar, porque quando morre uma mosca é sabido que nascem cem formigas e um milhão de vermes” (p. 74).
“Ao fim da tarde o largo perdeu o ar agressivo, é um território de abandono que acaba de cumprir mais uma jornada, percorrido, espezinhado, pelas sombras aliadas da igreja e da muralha. Dentro em breve vai render-se à noite, que é a face comum do universo, aconchegar-se nela, preencher os buracos e as rugas com escuridão. Confundir-se, enfim, com a mesma mancha que iguala outras zonas mais felizes — a estrada e os canteiros, as viçosas hortas” (p. 95).
“Fumo: E aqui cortam-me o caminho nuvens de um fumo quente, carregado de ternura e de recordação, que vêm de um pátio à entrada da aldeia. Faço um desvio, mergulho nelas, vou dar a um forno de pão, chamado pelo maravilhoso aroma da rama de pinho a arder. Labaredas calorosas, masseiras de tábua raspada, a ladina pá de forneira e a brancura do linho que cobre a branca farinha, tudo se afoga em névoa, em alvura — e eu também. Os olhos ardem-me, e nem assim deixo de estar preso ao conforto hospitaleiro, ao segredo e às seduções que há num forno de pão. Só daí por bastante tempo consigo despegar-me daquele tugúrio consolador, e então pasmo: também a aldeia se encontra coberta de bruma. Bruma ou fumo de pinho?
Depois do dia luminoso que esteve, uma turvação assim, repentina, não engana ninguém. São os ventos a mudar, são eles, os ares do oceano, que entram pela costa carregados de poeira de água, de névoa. Ar marítimo. Correcto, confere com o boletim meteorológico, que, uma vez sem exemplo, se decidiu a cumprir a palavra. De madrugada cá teremos o prometido noroeste, nada quezilento, nada alvoroçado, para impedir, como convém, a fuga das aves para o mar. Só falta que abrande durante a tarde de maneira a proporcionar uma deslumbrante entrada de patos na lagoa ao pôr do sol. Isso então é que seria correcto, correctíssimo" (p. 112-113).
José Cardoso Pires, O Delfim, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.
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