2. “O sentido das
coisas” (“Como é que eu vou contar isso?”), Revista Lilica and Tigor, São Paulo, set. 2010 (data aproximada).
A condição de
pai doméstico reserva-nos surpresas. Quando acreditamos que já sabemos de tudo,
descobrimos que não sabemos de nada. Assim foi com o episódio da sopa feroz.
Assim foi com o episódio do cocô onipresente.
Enquanto
preparava a primeira sopa da vida da Pipoca, eu a pus na cadeira; ela olhando,
concentrada, e deu então um muxoxo. Pus a sopa morna na tigela, e ela, depois
de encarar aquilo, gritou Maaauuuncshiiz!!!
e começou a chorar, e eu a levei para o quarto, onde ficamos diante do espelho (nós
o chamamos spêi), a rir!, a rir! Consegui
fazê-la esquecer-se da tigela, e voltamos à cozinha, e ela disparou no choro, e
eu disse: menina bonita come sopa de cooolher!, mas ela se jogou para trás e
berrou mais alto!, e eu a levei para o quarto, onde ela gritou Maaauuuncshiiz!!! e começou novamente a
rir diante do spêi; os dois ali,
suados e, de algum modo, cúmplices, ela sabendo o que eu queria, e eu sabendo o
que ela não queria, e depois eu a levei para a cozinha, e ela foi ficando séria,
carrancuda, e, quando eu a sentei na cadeirinha, mais uma vez disparou no
berrô, no berrô, no berrô que o gato deu!, e eu pensei: preciso preparar a
mamadeira, e refiz a sopa na versão toda-caldos-com-biquinhos e a aconcheguei
no meu colo, e ela olhou para mim e sorriu o-mais-belo-sorriso, cúmplice
totalmente dessa vez, e me acompanhou, pegando na minha mão com a sua mãozinha,
e lá fomos os dois juntos, ao longo de todos aqueles miiililiiitros, ao fim dos
quais ela fechou os olhos e dormiu... É assim que se dá sopa, pensei,
concluindo que a vida de pai doméstico é tudo — menos sopa.
Quanto ao
cocô, como vou contar isso? A Pipoca não tinha uma semana de vida quando veio,
enfim, aquele temidíssimo cocô gigantesco, onipresente, abundante e envolvente
— um cocô não previsto por nenhum fabricante de fraldas, não contemplado por
qualquer manual para pais iniciantes, não mencionado em um único cursinho
pré-natal e jamais referido em alguma consulta pediátrica. O cocô envolveu a Pipoca
da ponta da cabeça à ponta dos pés. A pequena mal conseguia mexer-se em meio
àquele — digamos... — contexto. Depois de ter limpado a Pipoca assim assim,
estava tentando, com um cotonete, remover todo o coquito presente em cada uma
das reentrâncias do complexo conhecido como
umbigo-da-Pipoca-ainda-sob-a-forma-de-coto. Quando já não havia mais nada a
fazer e o mundo já havia perdido todo o sentido, eis que surge a avó materna,
que, em quatro segundos, tirou a Pipoca de minhas mãos cheias também de
cotonetes, abriu a torneira do tanque e lá, debaixo d’água, a deixou, deixando
também Pipoca’s father calado e
pensativo — sabedor de que, um dia, será, por sua vez, avô e terá, por sua vez,
tanques e netos, e a presença de espírito de jamais confiar em cotonetes quando
o assunto é cocô no coto.
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