“Quem tem medo de Campos de Carvalho?”, Revista Argumento, Rio de Janeiro, 2004, v. 5, p. 22-24. (ISSN: 1679-6020)
Quase ninguém. Raras são as
histórias da literatura brasileira que falam das histórias do escritor mineiro
Campos de Carvalho (1916-1998), raras as antologias em que toma parte, raras as
monografias, dissertações e teses. O leitor médio não o conhece, o estudante de
letras mal o conhece, muitas livrarias não o possuem e poucos são os sebos que
conseguem escondê-lo por algum tempo — o bastante para que um aficionado
colecionador, tão raro quanto o exemplar que cobiça, finalmente o descubra e o
leve embora para sempre. Trata-se, sem dúvida, de um clássico — mas do qual não
se falava há mais de trinta anos.
Durante
seu decênio produtivo, 1954 a 1964, Campos de Carvalho fez sucesso, ou seja,
foi por seus pares reconhecido e cultuado, ao mesmo tempo em que publicava — e
vendia — por duas editoras já nascidas fundamentais dentro de nossa história
editorial: José Olympio e Civilização Brasileira. À primeira vista, Campos de
Carvalho não passa de um escritor que sabe escrever muito bem. Seu texto
desenvolve-se no interior de uma sintaxe tradicional, que se comporta em vários
momentos à portuguesa, uma escrita escorreita e um vocabulário invulgar. Esta
poética bem falante e cheia dos aromas da “boa literatura” tem, no entanto, um
fundo falso, um nervo aberto e uma carga inflamável: a liberdade radical da
criação, a crítica constante às verdades estabelecidas e ao uso mediocrizante
da linguagem, o humor como produção e diluição da mesma e velha angústia de
guerra: a boa e absurda condição humana.
Quem tem medo
de Campos de Carvalho? Arrisco: quem consegue sobreviver a uma lua que venha da
Ásia, a uma vaca de nariz sutil, a uma chuva imóvel e a um púcaro búlgaro —
mais que romances, estados de espírito, fragmentos de filosofia poética. A lua vem
da Ásia, publicado em 1956, contará a história de um sujeito
que se julga o hóspede de um hotel de luxo, depois o prisioneiro de um campo de
trabalhos forçados, para finalmente percebermos tratar-se do interno de um
hospício. O texto do livro forma um diário, e a representação de loucura que se
vê neste diário não é pouco complexa — é, sim, de tal forma crítica e relativa
que não raro nos atira à cara a loucura de nossa própria razão. Ou a parte de
morte em nossa própria vida, como é o caso da história de Vaca de nariz sutil — a de um ex-combatente de guerra que tratou
com a morte tão de perto que depois não mais teve forças para lidar com a
própria existência diária, cercada de morte por todos os lados, exceto por um
único. O amor que se descobre em A chuva
imóvel está a beirar o incesto. André e Andrea, eternamente separados pela
irmandade gêmea, dão feitio ao universo do narrador-personagem, que se mede por
duas palavras: introspecção e revolta. O humor levado a sério, às últimas
conseqüências, é a tônica de O púcaro
búlgaro: um grupo de esquisitos reunidos em um apartamento e envolvidos na
organização de uma expedição à Bulgária com vistas a verificar sua real
existência. A circunspecção com que os disparates vêm à tona, a galeria dos
personagens e o insólito da história em si provocam o alargamento do campo do
razoável e a celebração do nonsense. Terminado
O púcaro búlgaro, Campos de Carvalho calou-se. Voltou a
existir como escritor somente em 1995, quando a editora José Olympio, numa
iniciativa finalmente tomada, republicou seus romances num volume único
intitulado Obra reunida.
Conheci-o,
e passei a temê-lo, um pouco depois, já em 1997, num dia em que minha
mãe me atirou ao colo os seus quatro livros e disse: “Leia isto”. Estava
disposto a obedecer, mas antes perguntei a ela se já tinha lido. “Até onde me
foi possível.” “Foi possível o quê?” “Até onde me foi possível ler e não
enlouquecer”, disse ela. Aquilo me animou. Um ano depois candidatei-me para um curso de mestrado. Feitas as
provas, quiseram saber dos meus propósitos. “Vou estudar o Campos de Carvalho”,
disse, e quando vi já havia dito o que nem eu mesmo sabia que sabia até o
momento. A reação não poderia ter sido melhor. Parabenizaram-me sorrindo, e eu
quase posso apostar que por baixo dos sorrisos estavam dizendo, animados, algo
como um “até que enfim apareceu um maluco disposto”.
Dado o
primeiro passo por acaso, dei, também por acaso, o segundo: arranjei um colega
de mestrado, Mauro Gaspar, que se tornou cúmplice, confidente e irmão. Campos
de Carvalho tornou-se, de uma hora para outra, tema de trabalho de dois malucos
dispostos e, ao mesmo tempo, um importante e esquecido autor a ser temido com
toda a coragem que tínhamos. E tínhamos, mas as coincidências envolvendo o meu
tema estavam apenas começando a me impressionar.
Em uma
belíssima noite, conversei por telefone com uma ex-chefe muito amiga, Fernanda
Gurjan, e falei-lhe acerca do mestrado. “E a dissertação?”, perguntou. “Vai ser
sobre um escritor mineiro.” “Quem?” “Você não conhece. Aliás, ninguém conhece.”
“Você não conhece tanta gente assim, para estar tão convicto de que ninguém o
conheça. E então, quem é o seu autor?” “O Campos de Carvalho.” “Campos de
Carvalho?” “Não falei que você não conhecia...” “O Walter?” “Walter?!” “O
Walter é meu primo!”, disse ela, tentando não gritar. “Ah”, disse eu, e pensei:
“Nunca estive tão perto do homem”. Eu estaria mais ainda.
A partir
daí, o Campos de Carvalho passou a ser “o Walter”. “Estou tentando encontrar a
Lygia Rosa, mulher dele, mas não acho”, disse-me Fernanda, excitadíssima, pelo
telefone. “Ela está em algum lugar de São Paulo, e sei que vai se mudar para o
Rio. Quero organizar um jantar aqui em casa com você, Lygia e Maria Amélia
Mello, gerente editorial da José Olympio.” Eu só sorria.
Enquanto
isso eu começava a sair do lugar. Consegui o e-mail de outro primo do Walter, o
escritor Mario Prata, que gentilmente me telefonou e se colocou à disposição
para tudo o que eu quisesse. Mario Prata publicou alguns artigos nO Estado
de S. Paulo que se tornaram responsáveis por tudo o mais que se seguiu;
foram a pedra de toque para que hoje estejamos a falar de Campos de Carvalho.
Devo mencionar, neste sentido, o escritor Nelson de Oliveira e — como
entrevistadores corajosos — o Antonio Prata, filho do Mario, o Pedro Bial e também
o Paulo Roberto Pires, que, através de seu trabalho, lograram arrancar de um
Campos de Carvalho pouco eloqüente, cansado e triste as poucas palavras que,
mesmo assim, conseguiram aproximá-lo de seus antigos e novíssimos leitores.
O jantar
com Lygia e Maria Amélia saiu afinal do papel, e para lá nos dirigimos eu e
Mauro, a encontrar uma Fernanda Gurjan animadíssima diante de sua mesa de
jantar literariamente caracterizada com tudo o que havia na casa sobre Campos
de Carvalho. Foi um jantar literário. Lemos trechos dA lua vem da Ásia, da Vaca de
nariz sutil, dO púcaro búlgaro, e, não sei bem por quê, coube a mim
ler Fernando Pessoa. Alguém me disse: “Escolha um número e abra a página correspondente”.
Eu escolhi o treze, dia do meu aniversário e, por coincidência, do de Fernando
Pessoa. Abri a página treze daquela edição e dei com um verso cujas palavras
principais eu procurava há algum tempo e não encontrava. Trata-se de uma
expressão utilizada por Carlos Felipe Moisés em seus comentários à Vaca de nariz sutil. Diz ele, à página
18 da Obra reunida: “... de um lado,
o binômio morte-cemitério, de outro, a sugestão — já agora pessoana, ‘cadáver
adiado que procria’ — de que há mais mortos fora do que dentro [do cemitério]”.
E isto está no décimo e último verso da Quinta Quina, homenagem a D. Sebastião,
rei de Portugal, da primeira parte de Mensagem,
de Fernando Pessoa. E esse “cadáver adiado que procria” fui encontrá-lo
justamente ali naquele jantar, naquela página treze, sem o menor esforço, sem a
menor pesquisa, apenas abrindo numa página cujo número, o treze, nas palavras
de uma atentíssima Lygia, bem ao meu lado na mesa, era o número preferido do
seu marido, Walter Campos de Carvalho, “o Walter”. Temi-o ainda mais.
Principalmente
depois do que me aconteceu na Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Eu estava lá, na seção de periódicos microfilmados, à cata de um importantíssimo
artigo de Sérgio Milliet acerca dA lua
vem da Ásia, publicado no dia 4 de fevereiro de 1957. A moça encarregada
entregou-me um rolo contendo os microfilmes dO Estado de S. Paulo, do dia 1º ao dia 15 de fevereiro. Eu
precisava muito daquela crítica, e por isso permaneci obsedado diante daquela
tela verde-musgo, a rodar as manivelas e a ver passarem diante de mim todas
aquelas minúsculas páginas, pensando no tamanho da lupa que teria de arranjar
para conseguir ler as letrinhas que me esperavam. Já estava no final da edição
do dia 3 de fevereiro, ansioso pela edição do dia 4 e, portanto, ansioso para
chegar ao caderno cultural onde certamente estava o artigo do Sérgio Milliet,
quando me dei conta de que, dentro daquele rolinho de filmes, o dia seguinte ao
3 de fevereiro de 1957 era, inexplicavelmente, o dia 5... A microfilmagem havia
pulado, por razões incognoscíveis, a edição do dia 4... Perguntei à moça
encarregada se aquilo era possível e mesmo permitido, e ela disse: “Sim, erro
de microfilmagem, nada a fazer”. Mas eu já estava com a cabeça longe, a remoer
corajosamente os meus medos.
A última e
mais importante coincidência a atravessar o meu caminho aconteceu alguns meses
depois daquele jantar, quando eu e Mauro fomos convidados por Lygia para um
vinho em sua casa. “Onde ela mora?”, perguntei a ele, que me foi apanhar de
carro e já havia ido lá antes. “Em Copacabana”, disse. Entramos em uma rua e eu
quis saber se era aquela a rua da Lygia. “É. Por quê?” “Porque é mais uma
coincidência que me aparece.” “Qual?” Mas eu não cheguei a responder. Quando
paramos em frente ao prédio, resmunguei: “É aqui, Mauro? Não pode ser...”. “Por
que não?” E eu: “Qual o andar da Lygia?”. Mas ele estava ocupado em nos
identificar junto ao porteiro. “Diga a ela: Juva e Mauro.” Mas o porteiro,
cumprimentando-me com simpatia, dispensou com a mão as identificações e pediu
que subíssemos. “Você o conhece?”, perguntou o Mauro, já no elevador. Mas eu
queria era saber o andar da Lygia. Paramos logo no primeiro. “É aqui”, disse
ele. “Ah...”, disse eu. “Ah, o quê?” “Você não vai acreditar, Mauro. A coincidência
de que lhe havia falado quando entramos nesta rua é maior do que eu imaginava.”
“Diga.” E antes que tocássemos a campainha eu disse a ele; disse que Lygia
Rosa, mulher de Campos de Carvalho, era vizinha de porta de minha mãe, Telma,
que um dia me atirou ao colo a Obra reunida
e disse: “Leia isto”.
Quem tem
medo de Campos de Carvalho? Ora... Campos de Carvalho levou o absurdo
às últimas conseqüências. Ser surrealista foi a sua maneira de manter acesa uma
crítica constante sobre a sociedade, e Campos de Carvalho sempre se definiu um
autor surrealista. Mas o que é isso? Fui aos poucos compreendendo que essa
definição, como quase toda definição, constituía um ponto de partida, e não de
chegada. Borges disse que só podemos definir algo quando nada soubermos a
respeito desse algo. Eu nada sabia acerca de Campos de Carvalho, e tudo o que
me aparecia à frente me dizia que ele era um escritor surrealista.
Há, no entanto, duas maneiras de
se entender isso: a primeira, compreendendo-se o surrealismo em seu sentido
mais corriqueiro, como um conjunto de atos, palavras e idéias que dêem conta de
algo que está de certo modo deslocado, fora do real, do comum, do razoável, do
verossímil e do sensato. O efeito produzido por tudo o que esteja ligado a este
sentido tem o humor como fator constituinte. O tipo de surrealismo que lemos em
O púcaro búlgaro e as situações mais
corriqueiras de A lua vem da Ásia são
ótimos exemplos e demonstram a exploração de uma espécie de absurdo qualquer.
A segunda maneira de se entender a
intimidade de Campos de Carvalho com o surrealismo vai levar-nos ao surrealismo
como uma atitude diante da existência. Neste segundo sentido, o que é ser
surrealista? É, antes de tudo, não conceber uma arte que esteja apartada da
vida e uma vida que não tenha em si, do começo ao fim, um projeto artístico.
Campos de Carvalho é surrealista porque teve consciência de que seu trabalho
circulava em meio a uma sociedade mediocrizada, atomizada e afundada em seu
amor ao dinheiro. Ser surrealista é trabalhar com a palavra do modo com Campos
de Carvalho trabalhava: dando a palavra aos poetas, às crianças e aos loucos —
os únicos que não têm medo de Campos de Carvalho.
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