20 de fevereiro de 1999

"Um sinistro mistério literário"

"Um sinistro mistério literário — A estranha relação entre a arte e a vida é explorada no romance de Carol Schields, no qual uma dona-de-casa comum, após ser assassinada, se revela uma poetisa fascinante e um enigma que desafia a argúcia de biógrafos e de críticos", Jornal do Brasil, Caderno Idéias, Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1999.

Resenha sobre o livro Swann, de Carol Schields, ed. Record.

Quinze anos antes de tornar-se famosa, ter seus poemas reconhecidos, ser amplamente comentada, elogiada e afinal biografada, Mary Moffat Swann, então com cinqüenta anos, saiu de sua casa, na minúscula cidade rural de Nadeau, ao norte de Ontário, Canadá, na escura tarde de 15 de dezembro de 1965, e foi para Kingston, cidadela vizinha, bater à porta de Frederic Cruzzi, que ela sabia vir dedicando-se a encontrar e publicar novos talentos literários através de sua doméstica editora, a Peregrine Press. Durante a visita, que tomou pouco mais de uma hora, Cruzzi, entre encantado e aturdido, leu os 125 pedacinhos de papel amassado com os poemas que a sra. Swann havia trazido para ele numa sacola de mão e decidiu publicá-los, pedindo-lhe apenas que lá deixasse os originais até o dia seguinte, quando lhe daria então uma resposta. Horas depois, provavelmente ao mesmo tempo em que contava à mulher, Hildë, da inusitada visita e lhe mostrava a imensa poesia circulando pela aparente rusticidade daqueles versos, Mary Swann era brutalmente assassinada por seu truculento marido, que lhe deu um tiro na cabeça, esmagou seu rosto com um martelo, desmembrou seu corpo com um machado, escondeu as partes no silo da pequena fazenda e depois matou-se — não deixando atrás de si senão um rastro de desrazão e falta de sentido.

O relato do crime saiu em maiúsculas nos jornais locais, os poemas foram afinal publicados numa modesta tiragem e sob o título de A Canção de Swann — e de Swann nada mais se ouviu falar até o dia em que um livro seu acabou descoberto na prateleira de uma cabana no lago de Wisconsin, quinze anos depois. A descoberta inspirou artigos que motivaram pesquisas que fizeram de Swann — que significa cisne e também poeta, solitários ambos, cada qual em seu canto — não apenas um fenômeno, mas principalmente um mistério literário. Infância descolorida, adolescência insossa, escolaridade medíocre, experiência profissional de um ano numa padaria, fastio, maturidade inaugurada com um casamento enjoado, existência vazia, mudança para uma fazendinha improdutiva na cidade de Nadeau, neve na porta, nascimento da filha Frances, mais neve na porta, o enfado firme do dia-a-dia — toda a vida besta de Mary Swann afinal não casa nem com a dramaticidade de sua morte, nem com a profundidade de seus versos.

Este não é o primeiro e nem o último livro de Carol Shields, que já escreveu quinze — entre eles Larry’s Party e, também publicado pela Record, The Stone Diaries (Os diários de pedra), premiado com o Pulitzer em 1995, o Governor-General’s e o National Book Critics Circle. Shields, americana mas naturalizada canadense, publicou Swann: a Mystery em 1987. Os quatro capítulos do romance têm os nomes dos quatro personagens principais, e o quinto, escrito sob a forma de um roteiro para cinema, é um simpósio cujo tema é a própria Swann, que já não existe há quinze anos e pouco deixou além dos poemas, duas fotografias, um diário idiota e uma caneta Parker 51, com a qual escrevia — objetos que vão misteriosamente desaparecendo, bem como os originais manuscritos e os poucos exemplares publicados por Cruzzi.

Abre o romance a incansável Sarah Maloney. Pesquisadora de sucesso aos 28 anos, brilhante, feminista convicta, independente, falante e solitária, Sarah descobriu o livro de Swann e desencadeou a construção do mito. No seu encalço, Morton Jimroy, famoso biógrafo de famosos poetas, céptico com relação à supervalorização da infância pela teoria biográfica, detalhista, misógino e desconfiado. Morton, bem como Sarah, não consegue encaixar a vida de Mary Swann na obra de Mary Swann, embora tenha de fazê-lo para poder viabilizar a biografia que tem em curso. Ambos perdem-se. Sarah, em especulações acadêmicas; Morton, na busca desmesurada por qualquer pequeno acontecimento que ilumine aquela estúpida existência em Nadeau.

Como contraponto ao teorismo de Sarah e ao azedume de Morton estão Rose Hindmarch e Frederic Cruzzi. Rose é funcionária da prefeitura de Nadeau, já entrou na menopausa há onze meses mas o fluxo, para seu desespero, resolvera voltar, é bibliotecária e curadora do museu local, gosta de um bom romance de suspense, é do conselho da escola dominical, é virgem e também conselheira da cidade, não sabe nada de poesia, muito menos o que pode significar, conheceu Swann na biblioteca, mora sozinha, está com um pelinho nascendo no queixo e tem uma memória de elefante. Cruzzi é o mais velho e o menos neurótico dos quatro — bondoso, sincero e simples, um humanista educado em todas as artes e todas as línguas, um solitário após a morte da mulher, Hildë, sua definitiva paixão. Diz Cruzzi, numa carta para Sarah Maloney: “...algumas vezes é melhor olhar o universo com olhos estrábicos, para sujeitar a si mesmo a uma deliberada distorção e esperar que, da visão confusa, (...) surja o acidente que representa a verdade”.

Mas a verdade é numerosa. A vida íntima de quatro solitários incuráveis em busca da familiaridade perdida em Swann e na biografia que ela não deixou registrada é o barro a partir do qual Shields vai desenvolver velhos assuntos. A solidão, hoje sob a forma de modus vivendi em cidades ricas e industrializadas — como Chicago, onde mora Sarah —, e seu efeito devastador sobre a personalidade humana. A dificuldade de se chegar ao âmago de uma existência, onde só caminharemos às apalpadelas e rodeados por sombras — donde o malogro de toda e qualquer biografia, donde o complicado relacionamento entre a vida e a arte, que nem sempre se tocam, quase nunca se imitam e em geral não se explicam.

Dois poemas de Mary Swann:

1 

Os rios desta terra 
Repuxam, rompem e matam 
E as águas do meu corpo 
Correm invisíveis. 

2 

Coisas Perdidas 

Acontece vez por outra, quando procuramos 
Objetos perdidos, um livro uma foto ou 
Uma moeda ou uma colher, 
Alguma coisa atravessa nossa mente... 
Não realmente uma sombra mas o que uma sombra viria a ser 
Num lugar em que faltava luz. 

Como se as coisas perdidas desaparecessem 
Dentro delas mesmas, os livros retornam 
Ao papel ou à madeira ou ao pensamento, 
Moedas e colheres ao simples mineral, 
Sem brilho nem história, 
Esperando fora de vista 

E tornando-se parte de uma perda maior 
Sem um nome 
Nem definição ou forma, 
Parecido com o que nos toca 
Nos momentos de humilhação.

Opções de trechos representativos dos quatro personagens principais que dão nome aos capítulos

Sarah Maloney:

“...como Swann conseguiu fazer tudo isso? Onde lhe foi possível encontrar a centelha para converter substância emblemática em ressonante poesia, naqueles desolados acres de terra em Ontário, em meio à desordem da fazenda? (...) As mulheres tricotam meias há séculos, e provavelmente constroem em suas cabeças versos que nunca chegaram a escrever. Aconteceu de Mary Swann dispor de uma caneta, aliás, uma Parker 51, e de olhos capazes de transpor a superfície das coisas. Além de uma espécie de persistência de um coração dilacerado, que a levava a sentar-se, após um dia fatigante de trabalho, e encaixar seus pensamentos em ambíguos lotes de versos rimados.”

“Minha boa amiga e mentora Peggy O’Reggis vive num universo em que os homens são apenas marginalmente visíveis. Idem para minha advogada, (...) confiável cidadã de Lesbos. Metade das minhas alunas na graduação prefere carregar os seus próprios pinos de barraca. Que se dane a estrutura do poder machista, e que se dane a penetração como expressão sexual. Elas pularam fora. Todas essas mulheres me fazem convites, literais ou subliminares. Mas algo em mim resiste.”

“De uma maneira semelhante, (...) Mary Swann inventou a poesia moderna. (...) Sem ter conhecimento da poesia de Pound ou Eliot, sem nem mesmo conhecer esses nomes, ela realizou o seu trabalho. Seus versos possuem todos os impulsos rudimentares e todas as recentes abrasões sintáticas que marcam o protótipo. Não se pode ler seus poemas sem perceber que existe uma forma em processo de criação.”

Morton Jimroy:

“Como acontece a muitos introvertidos, Jimroy desconfia dos caprichos do mundo interior da psique, mas nutre uma fé enorme no mecanismo do mundo exterior, que diz respeito a governo, maquinaria, arquitetura e ciência — que entende como sendo presidido por autoridades, anônimas mas confiáveis, capazes e, o mais importante, imbuídas de boas intenções. (...) Uma raça de homens e mulheres incompreensíveis (para ele) assumiram a responsabilidade pela sua segurança, estão desejosos de criar regulamentos, de estabelecer padrões, e de gerar um sistema inteiro de checagens e contraprovas. Quando ele gira o botão do forno de microondas (...), tem como certo que os minúsculos raios penetrem no alimento e não nele...”

“Jimroy detesta a falácia popular de que o biógrafo cai de amores por seus biografados. (...) Tão fácil, tão aprazível, este romance entre o escritor e o biografado; tão estimulante, tão querido, (...) tal convite ao sentimentalismo. E é, em certo sentido, irmão de uma outra concepção equivocada, que as pessoas alimentam sobre quem escreve romances: de que, a partir de um certo ponto, o livro adquire vida autônoma e começa, como adoram dizer, a escrever-se por si próprio. (...) Jimroy sabe muito bem que escrever uma biografia é o trabalho mais árduo do mundo, e que tem iguais chances de constituir-se ou não um ato de desprezo. Basta pensar em Sartre escrevendo sobre Flaubert. Ah, Deus. E — para não ir tão longe — quem conseguiria amar Erza Pound? Não ele, com certeza, não Morton Jimroy, um moralista manqué.”

“...chegou a se perguntar se era a própria poesia que começara a desprezar. Sem dúvida, vinha nutrindo desconfianças sobre seu sintetismo e sua forma hermética. Era tão fácil um poema ser nada mais que uma fraude — qual a diferença real entre uma elipse e um vácuo? (...) Sempre lhe parecera uma espécie de milagre que a poesia, realmente, em certas ocasiões, falasse. (...) não podia enxergar nada mais admirável do que o desejo impertinentemente humano de dominar o mar da linguagem comum e extrair dele palavras dotadas de riqueza, de beleza oculta, arranjando-as de tal maneira que o indizível pudesse ser dito.”

Rose Hindmarch:

“Rose é uma mulher feliz; sua rotina torna-a feliz. Bem cedo, pela manhã, (...) enche-se de expectativas a respeito do dia que tem pela frente. (...) E, nas noites de sexta-feira, logo cedo mergulha em seu pijama e enfia-se na cama, para ler. São apenas sete e meia, ainda está claro lá fora. (...) Pode ser que não pare de ler antes da meia-noite, ou até mais tarde. Amanhã será sábado; poderá dormir até a hora que quiser.”

“No entanto, a poesia apresenta um problema para Rose. À exceção do livro de Mary Swann, ela sente dificuldades em entender do que falam, e mesmo com a sra. Swann não é sempre que isso acontece. ‘Os aposentos em minha cabeça estão despidos / O trovão escova meu cabelo.’ Mas, o que ela está querendo dizer com este poema? Certamente, aposentos simboliza alguma coisa, mas trovão? ‘O outro lado do espelho / Abre-se para o lugar onde me escondo.’ Sem pé nem cabeça. Quem pode entender isso?”

Frederic Cruzzi:

“Os poema de A Canção de Swann foram desdenhados pela maioria dos críticos como mera curiosidade com bom acabamento, e os 250 exemplares que a editora imprimiu venderam muito mal. No final, ele e Hildë acabaram distribuindo-os, guardando apenas quatro. Eram justamente este quatro exemplares que estavam faltando. Contemplando a estante, Cruzzi sentiu-se atingido pela idade avançada, pelo seu desespero, e por saber que um ato de represália, há muito adiado, acabara de ocorrer. (...) Sentiu a vista turvar-se ao dirigir-se para o pequeno quarto de dormir nos fundos (...). Abriu a porta. (...) As gavetas do arquivo estavam abertas, e o conteúdo havia sido espalhado pelo quarto todo. (...) Supôs que devia ficar agradecido, mas em vez disso seu rosto conturbou-se de lágrimas.” 

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