“A cabine”,
Ficções, Rio de Janeiro, ed. 7Letras, 1999, v. 3, p. 54-63. (ISSN: 1415-9775).
2002:
O conto “A cabine” foi roteirizado por Rosane Lima para o episódio de estreia
do programa “Brava Gente”, da TV Globo, veiculado no dia 9 de abril de 2002,
com Marília Pêra e Antônio Fagundes nos papéis principais.
Dona
Amélia chegou à sua casa, como de costume, às sete e meia da noite. Está com
alguns embrulhos na mão e mais uma vassoura nova, porque aquela, realmente.
Encosta tudo ao pé da porta, cata a chave na bolsa e pensa no jantar. Entra,
põe os embrulhos no chão e acende as luzes. Tudo para o armário, rápido, a
vassoura a um canto, direto para o banho, já pode o bife ficar de fora para
adiantar. Pendura a bolsa no cabide da sala, vai para o quarto, que não é
quarto, é sala, é tudo a mesma peça, tira o colar, o relógio e os brincos,
senta-se no sofá, que é também uma cama, tira os sapatos e as meias, tira
também a blusa e se levanta, para tirar o resto. Quatro passos e está no
banheiro.
Entra
no box, passa a mão pela barriga enquanto espera a água esquentar, passa a mão
pelos peitos e pela bunda e dá um suspiro. Já saiu do banho mas decide não pôr
camisola porque terá de ir à rua para telefonar, e a fila em frente à cabine.
Nem cinco minutos e estará pronta. É cedo para ligar a televisão, a cena em que
eles finalmente se encontram e descobrem quem são de fato deve ser só no fim.
Onde está a revista? O arroz. Vai para a beira do fogo, mete numa panela o purê
e o arroz e o bife na frigideira. Senta-se no sofá, relaxa os ombros e abre
lentamente as mãos, deixando as palmas estendidas para o teto da sala, que é
também o da cozinha. O do banheiro era diferente, azulejo, azulejo porque era
azul, azulejo clarinho. Suspira longamente e lembra-se do bife. Arruma a mesa
num instante e se senta. Pensa na fila em frente à cabine, engole em dez ou
doze garfadas o arroz e o purê, em sete pedaços o bocado de bife, engole em
seco, para adiantar, meia pastilha de sal de fruta e vai.
Chovia quando chegou à rua, e havia também um homem ocupando o
telefone. Mas o homem não falava com ninguém e apenas fazia a cabine de abrigo.
Dona Amélia corre para ele, bate no vidro e grita. “O senhor não está usando!”
“Mas estou seco”, disse ele, abrindo a porta. “E eu, molhada.” “A senhora me
perdoe. Eu espero lá fora.” “Obrigada.” Dona Amélia toma posse da cabine e liga
para o filho. Ocupado. Tenta de novo. Ocupado. Vira-se dona Amélia para trás e
procura pelo homem, que ocupa um canto da calçada, próximo ao meio-fio, já
encharcado. Volta-se dona Amélia para o telefone, tenta de novo, ocupado.
Vira-se rapidamente, a chuva aumentou e lá estava o sujeito. Dona Amélia abre a
porta. “O senhor não quer tentar agora? O meu número está ocupado!” “Não,
obrigado! A senhora fique à vontade!” “Mas o senhor não vai ligar para
ninguém?” “Não, obrigado”, e ele se aproximou. “Quem eu procuro não está em
casa. Liguei pela primeira vez tem um minuto, e a pessoa não está em casa.” “E
o senhor está esperando o quê?” “Que a senhora termine de falar e eu possa
voltar para o meu abrigo.” “E o senhor vai passar a noite inteira aqui?” O
homem não respondeu.
Paciência, mas o pior era a novela. Não pusera o relógio e era
preciso controlar o tempo. Abriu a porta e gritou. “O senhor tem horas?” “Não,
mas daqui a pouco sei que vai começar a novela!” “Ah, obrigada!” Pelo menos o
homem sabia da novela. Dona Amélia voltou-se lentamente, bem mais calma, e
recomeçou a discar. A responsabilidade pelo horário da novela estava agora nas
mãos dele. Não iria preocupar-se à toa. Sempre ocupado. “Diabo.” E foi só dizer
diabo para arrepender-se. Ergueu os olhos, o teto da cabine era de fibra, e
meteu a cabeça para fora. “O senhor tem algum pedaço de madeira aí à mão?” O
homem tirou as mãos do paletó, mirou as palmas como para confirmar que estavam
vazias e levantou os ombros. Mas teve o impulso de olhar em volta e assim
descobriu, perto do ralo, um pedaço de pau, que pegou, sacudiu de leve e foi
entregar à dona Amélia. “Obrigada. Não, não, não. O senhor segure, mas segure
firme.” E ela deu três batidinhas na madeira e com isso acordou os deuses, o
deus, que no caso de dona Amélia era um só, o que havia sobrado. E
repreendeu-se, não tanto por invocar o diabo, mas por ter acordado aquele que
nunca dorme e, talvez por isso, também nunca acorde. Abriu os olhos e reparou
que o sujeito ainda estava lá, plantado na chuva e com o pedaço de pau à mão.
“O
senhor quer tentar?” O homem baixou a cabeça, olhou para a madeira e depois
para dona Amélia e disse que não, que não acreditava nessas coisas. Dona Amélia
sorriu e virou-se. Partia para mais uma tentativa quando sentiu a tempestade
bem em cima da cabeça e a cabine a vibrar com as bagas que caíam. Teve uma
idéia. Olhou para trás e viu que o homem já se tinha afastado. “O senhor pode
voltar aqui, por favor?”, gritou. E olhou-o bem de perto. “O senhor está
encharcado. Eu estava pensando, o senhor poderia ficar aqui dentro comigo até
eu falar com meu filho, se o senhor não se importar, é claro. Ainda está
ocupado. Quando desocupar, o senhor volta para a chuva. O senhor sabe, a
privacidade. É uma situação de emergência esta.” “Muito obrigado. Então eu vou
virar de costas e assim a senhora fica mais à vontade.”
Apertaram-se
como puderam, dona Amélia tentou três vezes e desistiu. Olhou então para o
vidro embaçado e depois para os números do teclado, desatarraxou o boca do
telefone, leu e releu as instruções no painel, ia vendo, enfim, se matava o
tempo, quando sentiu por trás uma encostadela. Era improvável não se
encostarem, o espaço era para dois pés. Dona Amélia achou melhor falar. “Com
licença”, e encararam-se. “Talvez o senhor devesse ligar mais uma vez. A pessoa
pode ter chegado. Com uma chuva dessas, só mesmo alguém muito esquisito para
sair por aí. Não me refiro ao senhor, é claro, que deve ter lá suas razões para
estar na rua com um dilúvio desses, mas.” O homem sorriu. “Nem sei se tenho.”
Dona
Amélia baixou a cabeça e espremeu os dedos do pé, involuntário gesto de defesa
em momentos de grande embaraço. Só faltava o sujeito começar um chororô ali
dentro da cabine. O que deveria ela dizer agora? “Bom, se o senhor não sabe”,
foi o que disse. “Talvez eu venha a saber, mas só depois.” “Depois do quê?” “De
falar com ela.” Dona Amélia, que não tinha mais nada a declarar, virou-se.
Virou-se ele também. Um minuto depois o homem sentiu uma coisa dura a bater em
suas costas, era dona Amélia estendendo-lhe o fone. “O senhor só vai saber se
falar com ela, e só vai falar com ela se tentar.” E revezaram-se. Dona Amélia
olhou para a calçada, depois para cima, para a chuva, depois para as poças no
chão, para o ralo, para o pedaço de pau, lembrou-se do diabo, do filho e também
das horas. Voltou-se ansiosa e viu que o sujeito ainda estava discando, talvez
o último número. Não, havia mais um. O disco girava lentamente na volta, tempo
bastante para que o homem checasse no pedacinho de papel de pão o número
rabiscado, pouco discado, provavelmente nunca usado. Mais um número, este era
pequeno, deve ser o um ou o dois. Era o um. Agora mais um, era o um de novo. A
cabine que ficava três quadras adiante era mais moderna, com telefone de
teclas.
“Como eu disse, ninguém atende.” Dona Amélia assustou-se com a voz
do homem. Estava longe, no seu próprio telefone, que não ligava, só recebia, e
tentava lembrar-se de que tipo era, se de teclas ou de disco, provavelmente de
teclas. “O senhor tentou quantas vezes?” “Duas.” “Não quer tentar mais?” “Não.
Já são horas.” “Isso. Eu estava para perguntar alguma coisa para o senhor e não
me lembrava. Agora lembrei. A novela.” “Que é que tem a novela?” “Já começou?”
“Vai começar agora.” “Hoje é a cena em que eles finalmente se encontram e
descobrem quem são de fato.” “A senhora tem razão.” “O senhor mora por aqui
perto?” “Não. Moro em outra cidade.” “Mas está decerto nalgum hotel.” “Também
não. Cheguei hoje e hoje volto. Quer dizer, se não conseguir falar com a pessoa
que procuro, volto hoje.” “E se conseguir?” “Se conseguir falar com ela? Não
sei.” “E o senhor acompanha a novela?” “A novela é sagrada.” “E o senhor vai
assistir à novela onde?” “Vou tentar um desses botequins com televisão.” “Ah.”
Dona
Amélia respirou fundo. O homem parecia simpático. Educado, barba feita,
cavalheiro, um pouco curto nas palavras, mas simpático. Era gente de bem, dava
para ver só de olhar. Ainda por cima, pobre homem, com aquela chuva, chegado de
viagem, tentando encontrar uma pessoa, pelos vistos uma mulher, talvez um amor
antigo, como às vezes acontece na vida real e quase sempre na novela. Dona
Amélia respirou muito mais fundo, tinha de decidir agora. Não. Era melhor não
inventar moda, mas quando deu por si já tinha aberto a boca. “Se o senhor
quiser assistir à novela em minha casa, eu moro aqui mesmo em frente”, disse, e
emendou. “O senhor não faça essa cara e não fique pensando que, bom. Eu só
estou fazendo isso porque a situação em que o senhor está, convenhamos. Eu, por
mim, jamais perco a novela. E o senhor está correndo um grande risco de perder
o capítulo de hoje, sem falar no risco de ficar perambulando por essa cidade.”
“Não, não. A senhora não entendeu minha surpresa.” “O senhor é que não entendeu
a minha boa intenção. Eu moro sozinha, é verdade, mas tenho vizinhos atentos. E
só estou fazendo este convite porque sei o que é perder um capítulo, a gente
depois não pega nada, e porque já posso ver a gripe que o senhor vai pegar e,
bom. Eu bem sei que nós não nos conhecemos, mas o senhor me pareceu gente de
bem, assim como eu, de modo que.” “A senhora me desculpe se me mostrei
surpreso, mas na cidade grande a gente não espera esses gestos. Muito prazer,
meu nome é José, e estou encantado e muito agradecido com o seu convite. A
senhora se chama?” “Hum, Marta, mas pode me chamar de dona Marta.” “Dona Marta,
se eu fiquei surpreso, foi com sua generosidade, acredite.” “Bom, senhor José,
nesse caso.” “A senhora ainda quer discar para o seu filho mais uma vez?” “O senhor
não disse que a novela estava para começar?” “Já começou tem dois minutos.” “E
o senhor sabe disso como, se não tem relógio?” “Eu liguei para a hora certa
enquanto a senhora estava de costas.” “O senhor é esperto.”
Quando
saíram do elevador, dona Amélia ainda tremia. Só faltava aparecer alguém e
topar com ela ali, acompanhada de um sujeito, o sujeito tinha nome, é verdade,
era o senhor José, ou João, não importa, mas disto ninguém sabia, só ela. Ela
mesma, se a encontrasse ao lado daquele sujeito vestido de preto e mais
parecendo um corvo, estancaria à porta chocada. Mas não há o que temer, nem o
que tremer, não há mal algum em convidar um estranho que não é mais estranho,
estranho não tem nome, e esse tinha, era o senhor José, ou João. Convidar um
amigo para ver a novela é a coisa mais natural do mundo. Dona Amélia, enquanto
catava a chave no bolso, pensou alto. “Hoje é a cena em que eles finalmente se
encontram.” “Mas isso, dona Marta, eles só vão mostrar no final.” Dona Amélia
concordou com um grunhido e tomou a dianteira. “É por aqui, o senhor não
repare, a casa é pequena mas o sofá é confortável.”
O
senhor José parou à soleira e olhou à volta. A sala, que pelos vistos era
também um quarto e uma cozinha, tinha um sofá para três, logo à frente uma
televisão suspensa no teto por um suporte de ferro brilhante e embaixo da
televisão um armário de roupas ao lado de uma mesa com restos de um jantar e
duas cadeiras. “Com a sua licença, dona Marta.” “O senhor fique à vontade.” “A
senhora mora num apartamento muito bonito e aconchegante.” “Obrigada. São os
olhos do senhor.” “Decerto que são. É com eles que posso ver que a senhora tem
muito bom gosto.” “O senhor precisa de um café. Use o banheiro para se secar.
Depois de seco, pode sentar no sofá.” O senhor José obedeceu, dirigiu-se ao
banheiro e, feliz, trancou-se. Não achou estranho estar ali. Estranho era
aquele teto de azulejos. Ficou lá o tempo que dona Amélia levou para arrumar a
mesa e providenciar dois cafés e uma cadeira, que encaixou ao lado do sofá.
Sentaram-se, mas a novela não havia começado. O que viam eram as
fagulhas e os chuviscos do canal sem sintonia, a tela cinza da tevê a fritar
sua própria imagem num caldo de bolinhas brilhantes e barulhentas. “Quando
chove é sempre assim”, disse ela. E em um minuto os olhos de ambos já haviam
baixado da televisão para o armário, do armário para a mesinha e da mesinha
para as duas cadeiras. E passeando pela sala, e tentando não se cruzarem,
acabaram os quatro olhos reunidos numa pequena prateleira próxima à pia da
cozinha. Dona Amélia baixou a cabeça e espremeu os dedos do pé. Na pequena
prateleira próxima à pia da cozinha estava o telefone. “O senhor já deve ter
percebido que eu tenho um telefone”, começou, rápida, antes que o sujeito
pensasse que ela era louca ou estava devendo à companhia telefônica. “Sim, é
verdade. A senhora tem um telefone.” “Sim, e o problema é que eu não consigo
dar...”, interrompeu a si mesma para reprimir um bocejo, “... só receber
telefonemas. O senhor me desculpe.” “Imagine. E a senhora já esteve com um
técnico?” “Não. A última pessoa foi meu marido.” “Seu marido?” “É. Ele bem que
tentou um pouco antes de morrer. Ligou para a companhia telefônica, eles
disseram que o problema era aqui no prédio, e até hoje.” “Quanto tempo tem
isso, dona Marta?” “Uns dois meses.” “Oh, então é recente? Meus sentimentos.”
Dona Amélia apenas disse: “O café esfriou”.
Esvaziaram
mesmo assim as xícaras, concentrados no barulho da televisão fritando e da
chuva caindo, e quando o silêncio estava para virar pedra dona Amélia abriu a
boca, “O senhor quer mais café?”, ao mesmo tempo em que ele, “A senhora sabe,
eu estava tentando ligar para uma moça...” “O senhor quer mais café?” “Não,
obrigado. Uma moça não é bem a palavra, o tempo passou, e hoje, depois de quase
trinta anos...” “O senhor por favor não se sinta na obrigação de me dar
satisfações.” “Sim, não, mas é que a senhora me pareceu intrigada desde o
início, e...” “O senhor nem pense uma coisa dessas. Eu me preocupei com a
chuva, com a possibilidade de o senhor se resfriar e com a novela,
principalmente com a novela, que, a julgar pela hora, já começou.” “Pois é,
talvez uma pancadinha lá em cima”, e ele já se ia levantando para bater na
televisão quando a cara bem barbeada do moço do noticiário apareceu falando que
em virtude de problemas técnicos relacionados ao temporal nas antenas de
transmissão a novela poderia atrasar alguns minutos, talvez muitos.
E
dona Amélia, que não sabia mais o que dizer, disse: “Bem”, pegando a bolsa e a
chave e apenas olhando para o guarda-chuva, “talvez seja melhor telefonarmos
novamente”. “Se a senhora quiser, dona Marta, vou sozinho. Ligo para o seu
filho e, caso não esteja ocupado, peço a ele que ligue para cá. Assim a senhora
não se molha”, e o senhor José, orgulhoso da própria inteligência, sorriu com
tanta simpatia que dona Amélia quase, quase disse a ele que senhora estava no
céu, ao lado do senhor, e que ele poderia chamá-la mesmo era de Amélia, ou
Mélia, que era como a irmã a chamava. Mas lembrou-se a tempo de que havia dado nome
falso e que o filho, esquentado como quê, desligaria na hora, dizendo não
conhecer nenhuma Marta, e pronto. Passava ela por mentirosa e desconfiada aos
olhos do senhor José, que tão boa pessoa parecia ser. “Não”, disse, “eu vou com
o senhor.” E desceram juntos.
Espremeram-se
dentro da cabine e, mais uma vez molhados, fizeram ambos as suas tentativas. O
sinal de ocupado cortava todas as esperanças de um contato imediato, mas
permitia a permanência da certeza de que havia alguém em casa. O chama chama e ninguém
atende mantinha as esperanças em suspenso, mas fazia crescer, a cada novo
toque, a incômoda suspeita de que a casa só não estava vazia porque havia lá um
telefone a apitar, como um velho surdo gritando na escuridão de um quarto. Para
o senhor José, pouca coisa mudava, era apenas uma questão de continuar cada vez
mais sozinho.
Olharam-se
ao fim de alguns minutos e sorriram, amarelos e desapontados. Invertidos os
sinais, o mundo seria diferente. Dona Amélia, preocupadíssima por não saber do
paradeiro do filho em noite tão tempestuosa. O senhor José, um tanto ansioso,
muito ansioso, uma pilha de nervos, sabendo que o telefone do seu amor de
infância poderia, tão subitamente como uma parada cardíaca, desocupar. E ele
teria de dizer quem era e o que queria, explicar tudo desde o início e
preparar-se, talvez, para o desinteresse e o silêncio, ao fim do qual ele
pediria desculpas e desligaria. Mas o mundo não era assim, ou assim não estava.
Voltaram a sorrir um para o outro, amarelos e desapontados, e
correram aos pulinhos para a portaria do prédio. Entraram e reuniram-se para um
novo café ali mesmo, ao pé do fogão, sentindo-se ambos mais à vontade. “Pelo
menos esta minha viagem não foi tão perdida assim.” “O senhor veio de muito
longe?” “Umas cinco horas daqui.” “Mas por que é que veio? Quer dizer, se a
pergunta não for indiscreta e...” “As respostas, dona Marta, é que são
indiscretas, não as perguntas. Há muitos anos venho sonhando em vê-la
pessoalmente. Então pensei que poderia ligar, pedir seu endereço, dizer que
quero escrever e depois aparecer em sua casa de surpresa, alguns minutos depois
de ter ligado. Ela abre a porta e eu a vejo enfim, não sei se mais ou menos
bela, porque o rosto que vejo é o rosto de uma menina, e colocar trinta anos
sobre o rosto de uma menina...” “E ela, bem...”, ia dizer dona Amélia. “Ih,
dona Marta, é uma longa história essa”, e o senhor José fechou os olhos.
“Aqueles amores que não acontecem quando têm de acontecer e a gente fica o
resto da vida a imaginar como teria sido a vida se tivessem acontecido ou como
poderá vir a ser caso ainda aconteçam.” Dona Amélia balançou as mãos. “Não, eu
ia perguntar se o senhor por acaso se informou antes para saber se ela não está
casada ou se não se mudou...” Ele abriu os olhos e por alguns segundos não
disse nada, apenas encarou-a como se tivesse que decorar seus traços para toda
a vida. Enfim falou. “Não tenho o endereço, apenas um número de telefone e a
informação de que mora pelas bandas da rodoviária.” “Este bairro é grande”,
disse ela. “Do tamanho da minha cidade”, disse ele.
E dona Amélia lembrou-se de que a cena em que eles finalmente se
encontram e descobrem quem são de fato iria ao ar naquela noite. Não iria mais.
A novela e toda a programação prevista para as próximas quatro horas seriam
transferidas para a noite do dia seguinte. Era o que dizia a televisão, em
letras brancas e antipáticas sobre um fundo cinza escuro tão discreto que ainda
não haviam dado por ele quando enfim se sentaram, já sem assunto, para ver se
viam a novela. E foi tanta a decepção, tão súbita a pancada nos ânimos, que
permaneceram mudos e perdidos, como se tivessem sido roubados e sobrassem
apenas as mãos abanando, os bolsos vazios e toda a vida pela frente.
Dona Amélia ficou desnorteada. O que deveria fazer? Fazer sala,
servindo uma bebida forte e transformando tudo aquilo, enfim, em uma visita, ou
não fazer nada e esperar que ele faça? E o que deveria ele fazer? E o que ela
gostaria que ele fizesse? Dona Amélia ainda olhava para a televisão, como se
não pudesse compreender o objeto barulhento que tinha diante de si, quando a
resposta veio, súbita e estridente. “Deve ser o seu filho”, disse o senhor
José. “É ele com certeza”, disse ela, já de pé e claramente aliviada. “Ninguém
mais, além do meu filho, tem o meu número”, e atendeu.
Não falou ela três frases. “Tudo bem, filho?” “Tudo ótimo, mãe, e
você?” “Tudo bem.” E a ligação caiu. Mais que depressa o senhor José, que não
queria de modo algum estar ali ao lado enquanto mãe e filho matavam saudades,
aproveitou a queda para despedir-se. E o fez rapidamente, porém com método,
agradecendo primeiro pela confiança e depois pela hospitalidade com que ela o
recebera em sua casa. “Antes que meu filho volte a ligar”, disse ela, já à
porta, “prometa-me que voltará a tentar falar com ela ainda esta noite.”
“Prometo”, disse ele, e emendou, “o meu ônibus sai à uma da manhã, vou tentar
ligar para ela antes disso, deixo tocar três vezes. Não era esta a minha idéia,
mas a senhora está pedindo, e eu, como única forma de agradecimento possível,
prometo”, e o senhor José saiu da porta para a chuva.
Dona Amélia esperou até às onze mas o filho não voltou a ligar.
Não era a primeira vez que isso acontecia, e não era grave, já que o
telefonema, apesar de curtíssimo, dera conta do recado. Mãe e filho passavam
bem, e ambos sabiam disso, e sabiam também que já era tarde e que aquelas eram
horas de se estar na cama. Mas dona Amélia demorou a dormir. Pensamentos sem
contorno, imagens fugidias e lembranças desconectadas corriam sob suas
pálpebras enquanto duravam todos aqueles minutos que vêm antes do sono
profundo.
Restos do dia que passou, das compras do supermercado, da
vassoura nova, tudo ao pé da porta, quatro passos e estava no banheiro para
tomar banho e passar a mão pela barriga e pelos peitos e pela bunda. E a
calcinha nova, o sutiã novo e o vestido apertado para ir para a rua para ligar
para o filho e para encontrar-se com o homem na cabine do telefone, sob a
tempestade. Restos da noite que passou passam por dona Amélia, que não pôde
assistir ao momento em que eles finalmente se encontram e descobrem quem são de
fato. “Mas isso, dona Marta, eles só vão mostrar no final.” “O senhor é
esperto.” “Mas estou seco.” “E eu, molhada.” “Então eu vou virar de costas,
assim a senhora fica mais à vontade.” “E o senhor está esperando o quê?” “Vou
tentar um desses botequins com televisão.” “O senhor tem algum pedaço de
madeira aí à mão?” “Não, mas daqui a pouco sei que vai começar a novela.”
“Diabo.” “A novela é sagrada.” “Este bairro é grande.” “A senhora se chama?” “O
senhor sabe, a privacidade.” E quando dona Amélia sente enfim todo o peso do
corpo... “Aqueles amores que não acontecem quando têm de acontecer.” “Sim, e o
problema é que eu não consigo dar...” “Meu nome é José.” Ela começa a sonhar.
“A última pessoa foi meu marido.” Dispara o telefone na escuridão do
apartamento. “Deve ser o seu filho.” “Hum, Marta, mas pode me chamar de dona
Marta.” “O que tenho é apenas um número de telefone.” “Ninguém mais, além do
meu filho, tem o meu número.” “Nem sei se tenho.” “Bom, se o senhor não sabe.”
Dispara, súbito e estridente, o segundo toque. Dona Amélia vê em sonhos a
calçada, a chuva e, lembrando-se do diabo, o telefone. O sujeito ainda estava
discando o último número. Não, havia mais um. Os números do disco giravam
lentamente em volta da cabeça de dona Amélia. “Ninguém mais, além do meu filho,
tem o meu número.” Era um número de telefone pouco discado, provavelmente
rabiscado num pedaço de papel de pão. Agora mais um número, pequeno, que deve
ser o um ou o dois. Era o um. Agora mais um, era o um de novo. É quase uma da
manhã, dispara o terceiro e último toque. Dona Amélia dorme fundo.
fev. 99
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