“Almazinha brasileira: modos de ser”, Jornal O Povo, Fortaleza, 23 de janeiro de 2011, p.
7. [1]
É das boas ideias
da literatura brasileira a criação de uma almazinha que sobrevoe as inúmeras histórias
que compõem um romance e não se identifique de modo restrito com nenhum
personagem; antes, de maneiras diversas, consiga ser cada um deles e ao mesmo
tempo não ser nenhum, sendo essa almazinha apenas ela mesma, igual a si mesma,
de algum modo única e sozinha. A almazinha que surge às primeiras páginas do
romance Viva o povo brasileiro, do
escritor João Ubaldo Ribeiro, que faz, neste dia 23 de janeiro, 70 anos, atravessa
três séculos e algumas gerações, sempre a encarnar em pobres-diabos, índios
tupinambás, negrinhas escravas maltratadas ou ainda soldados brasileiros mortos
na flor da idade, como foi o caso do pescador e alferes José Francisco Brandão
Galvão.
O jovem, atingido pelas balas de algumas embarcações portuguesas,
cai morto no cais da Ponta das Baleias, na Baía de Todos os Santos, com um olho
furado e o crânio em pedaços. Mas José Francisco, alferes menos por nomeação de
patente e mais por assim o chamarem, graças às palavras de amor à pátria que
teria supostamente proferido à hora da morte e que somente as gaivotas
escutaram, tornou-se, da noite para o dia, um herói da independência, e seu
discurso inaudito, peça fervorosamente homenageada, repetida e parodiada em
versos e quadrinhas.
Neste dia de 1822, a almazinha que habitava o corpo do alferes um
segundo antes do passamento afinal se despega, às carreiras, e sobe mais uma
vez aos céus, aboletando-se no lugar onde se aboletam as almas enquanto esperam
pelo momento de mais uma vez poderem descer e encarnar nalgum bicho ou homem ou
mesmo numa planta. Permanecendo almas, as almas não aprendem nada; encarnando
em bicho, homem ou planta, aprendem as razões da vida. As almas precisam ser, e cada encarnação de uma alma é um modo de ser. E é essa almazinha
brasileira que acaba por ser, ao fim e ao cabo, a mais constante protagonista do
caudaloso romance de João Ubaldo. Ela entra e sai das histórias mais diversas,
através de encarnações e desencarnações que partem do século XVII e chegam ao
XX — quatro séculos de sofrimentos, tiranias, humilhações, festas e superações
—, para compor a eloquente amostra de alguns específicos modos de ser brasileiro. Quais modos
de ser?
Do entrelaçamento de todas as histórias do livro e dos cruzamentos
familiares verificados ao longo de tantas décadas destacam-se, do quadro
ficcional, três personagens, analisados pela professora Eneida Leal Cunha, na
sua tese Estampas do
imaginário — literatura, cultura, história e identidade (Dep. Letras, PUC-Rio, Rio de Janeiro, 1993): um
pescador, o José Francisco, que a posteridade somente reconhece como o heroico
alferes Brandão Galvão; um índio, que chamam de Capiroba; e ainda uma mulher, bandida,
de nome Maria da Fé. Os três personagens carregam por toda a vida,
habitando-lhes as entranhas, a almazinha brasileira que constitui o ser do
romance; e carregam também, agora nos ombros, a responsabilidade de
constituírem, cada um à sua maneira, uma tentativa de representação da assim
chamada identidade nacional.
O jovem alferes Brandão Galvão — bem menos presente na história do
que os outros dois, e justamente por isso, ou seja, por sua vida curta e seu
heroísmo precoce — encarnará, com o famoso discurso às gaivotas, a ideia do
patriotismo vazio, e silencioso, que atravessa o imaginário brasileiro, do povo
às elites. O “caboco” Capiroba, índio tupinambá, habitante da ilha de Itaparica
pelos idos de 1647, canibal de gosto exigente e profundo apreciador da carne
holandesa, transforma-se, com a sua eloquente presença, na possibilidade de se
poder ouvir uma voz que resta sempre silenciada nos relatos da história
oficial: a voz do índio em processo de catequização. E transforma-se também — porque
o centro da ação, aqui, é a catequese que teve de ser levada a cabo e à força,
uma vez que o índio não se submeteu à conversão — no produto, levado às últimas
consequências antropofágicas, do que lhe haviam ensinado os padres jesuítas com
a celebração da Eucaristia.
A terceira principal encarnação da almazinha brasileira recairá
sobre uma mulher: a jovem guerrilheira Maria da Fé — personagem possuidora da
mais poderosa biografia do livro, tamanha a variedade cultural e étnica de suas
ascendências. Como observou Eneida Leal, ao contrário de Brandão Galvão e de
Capiroba, Maria da Fé não constitui uma recriação a partir de nenhum modelo já
consagrado na história oficial, tal como o são o jovem soldado herói e o
selvagem canibal que precisa da catequese para encontrar a civilidade, e depois
a salvação, em Deus. Maria da Fé, pura criação ficcional, parece constituir uma
vontade do autor de que seja ela, das três, a mais apropriada encarnação da
alma do povo brasileiro — almazinha inquieta e indecisa, é verdade, mas possuidora
de um grande desejo de ser.
E é por isso, e por outras tantas razões, que o título Viva o povo brasileiro deve ser lido não
como uma exclamação — que não é —, mas como a manifestação deste desejo: o
desejo de que um povo viva e permaneça; ou, ainda, como uma exortação: que se
viva o povo brasileiro, ou seja, que se experimentem e se conheçam este povo e
os seus diversos modos de ser.
Vivamos este povo brasileiro, o que não deixa de ser una forma de se viver e
conhecer, também, e de forma poderosa, o escritor brasileiro João Ubaldo
Ribeiro.
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