Os
romances do sr. Saramago e as caretas dos portugueses; a metáfora da morte do
autor e o crime perfeito; o sr. Saramago como o insistente ressuscitador; o sr.
Saramago fantasiando-se de crítico literário; o sr. Saramago-ele-mesmo; o
estilo do sr. Saramago; o que fazer com o sr. Saramago?
Descobri
o sr. Saramago e a prosa típica do sr. Saramago somente muitos anos depois de
vir à tona o Memorial do Convento, publicado em 1982. Ainda hoje, também muitos
anos depois de o ter lido, lembro-me da história da pequena Blimunda, que não
deve ficar em jejum porque em jejum consegue pressentir o interior das pessoas
e descobrir quem são, realmente. O Memorial do Convento é uma musiquinha que a
gente vai lendo, vai lendo, e de repente levamos um susto, porque descobrimos
que penetramos no compasso final e só falta uma página para o desfecho, e aí
ficamos tristes, tristes, com o final da musiquinha. Mas a tristeza dura pouco,
o tempo de se pegar noutro livro do sr. Saramago e continuar com a festança
literária.
E com
o sr. Saramago fiz então aquele caminho clássico: li em seguida O ano da morte
de Ricardo Reis, de 1984, não sei por que razão acabei não lendo A jangada de
pedra, de 1986, talvez porque a idéia de uma Península Ibérica que se despregue
da Europa e siga navegando por mares nunca dantes navegados tenha me parecido de
uma absurdidade por demais gráfica, mas li A história do cerco de Lisboa, de 1989,
O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de 1991, o Ensaio sobre a cegueira, de 1995,
e acabei parando no Todos os Nomes, publicado em 1997, não me animando mais a
ler o Saramago dA caverna (2001), dO Homem duplicado (2002), do Ensaio sobre a
lucidez (2004) e dAs intermitências da morte (2005). Ainda tive paixão
suficiente pelo sr. Saramago-ele-mesmo para ler o Saramago dentro do Saramago,
ou seja, as suas ousadas investidas autobiográficas e diarísticas, e por isso
encarei o grosso volume dos Cadernos de Lanzarote (cujo último tomo saiu em 1997)
e ainda o delicioso exemplo de autoficção que é o Manual de Pintura e
Caligrafia (de 1977).
Quando
soube que o sr. Saramago havia ganho o Nobel, e seguramente graças à contundência
do Ensaio sobre a cegueira, fiquei exultante, porque esse livro me impressionou
como poucos livros me impressionaram na vida. Um português com quem jantei,
muito culto, me disse, fazendo uma careta, que aquilo não passava dA peste, do
Camus, reelaborada. Eu não li A peste, e até deveria ter lido essa Peste antes
de escrever este textinho, mas prometo que vou ler e depois comento o
comentário do amigo português. De todo modo, o sr. Saramago conseguiu fazer com
que nós víssemos, ali dentro do seu Ensaio sobre a cegueira, o inferno apenas
pressentido e tateado por uma humanidade toda ela cega — cega de dar dó. Como
dizem os portugueses, aquilo foi um livro muito bem conseguido, ou seja, muito
bem feito.
Os
portugueses dizem assim, de modo geral, mas não estou muito certo de que
acreditem muito nisso e que apliquem essa expressão às coisas que o sr.
Saramago diz. E digo isso baseado numa estatisticazinha muito pessoal, muito
circunscrita às minhas rodas de conversa literária. Desde que me mudei para
Portugal, num ensolarado dia de setembro, que vejo os portugueses com quem
converso torcerem a boca, numa careta medonha, quando se referem ao sr.
Saramago. Sinto-os, e sempre os senti, um bocado fartos do sr. Saramago, das
coisas que diz o sr. Saramago e das coisas que fez o sr. Saramago quando ocupou
o cargo de diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias, entre abril e novembro
de 1975, época em que, segundo me disseram muitos portugueses com quem
conversei, o sr. Saramago não se mostrou profissionalmente simpático com
aqueles que não simpatizavam com as suas idéias políticas.
Até
se poderia alegar, num rebate a essa minha sensação e também às caretas e
histórias portuguesas, que uma coisa é o sr. Saramago, outra coisa são os
livros que o sr. Saramago escreve. Isto é verdade em relação a muitos autores,
já que é sempre prudente, do ponto de vista teórico e analítico, que se faça
uma distinção entre a pessoa do autor e a sua “pessoa literária” — ou seja, o
narrador que, nas frinchas de um romance, está ali, sempre, mas muitas vezes
bastante escondido. No caso do sr. Saramago, essa distinção morre, e foi o
próprio sr. Saramago o autor desse crime de assassinato.
Outro
senhor, o sr. Roland Barthes, notável teórico e crítico francês, celebrizou-se,
entre outras belas e produtivas idéias, com aquela bela e produtiva metáfora da
“morte do autor”. Disse ele, em palavras poeticamente acadêmicas, que “a
escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro,
esse composto, esse oblíquo de onde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde
vem a se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (“A morte
do autor”, in O rumor da língua,
tradução de Mario Laranjeira, São Paulo, ed. Brasiliense, 1988, p. 65). Em
outras palavras, menos poéticas e menos acadêmicas, a personalidade do autor
pode vir a se apagar diante de uma voz mais forte e bem mais autorizada, qual
seja, a do narrador. O sr. Barthes ainda produz algumas gradações dentro da
categoria do “autor”, mas elas não nos interessam aqui. O que interessa é a
celebração da voz narrativa como uma importante voz a ser levada em conta para
uma produtiva e feliz análise textual, patati-patatá.
Depois
do crime perfeito do sr. Barthes, em que ele praticamente matou o autor com
belas e brilhantes facadas teóricas, vai o sr. Saramago, por sua própria conta
e risco, imbuir-se de uma espécie de missão ressuscitadora, reanimando o bom e
velho autor e recolocando-o no centro do cenário narrativo, e em posição
protagonista. Em seu artigo “O autor como narrador”, que começa com um encenado
e bobamente irônico pedido de desculpas por estar ele, “um simples prático da
literatura”, a aventurar-se nas estranhas terras da teoria literária; terras
onde se falam línguas que apenas “vagas semelhanças guardam ainda com a
linguagem comum”, o sr. Saramago aponta o dedo para a idéia da “morte do autor”
e a chama de absurda e perigosa, e questiona a importância atribuída à figura
do narrador, para ele uma escorregadia entidade, “propiciadora (...) de
suculentas e gratificantes especulações teóricas”. E vê ainda com temor a
conseqüência imediata dessa preferência: o descomprometimento compulsório do
autor e seu pensamento, reduzidos a “um papel de perigosa secundaridade na
compreensão complexiva da obra” (“O autor como narrador”, Revista Cult,
São Paulo, ano II, nº 17, p. 25-29).
É
bem verdade que o sr. Saramago não nega o que ele chama de “o instável
equilíbrio do fingimento”, mas também não acredita em fingimentos puros,
falsidades puras que, assim como as verdades ditas puras, não existem, senão
bastante misturadas nos caldos da ficção. Sua maior preocupação não é tanto com
a promoção do narrador à esfera da paternidade, mas com o espaço supostamente
vazio deixado pelo desaparecimento do autor. O sr. Saramago, além de obcecado
por si mesmo, é também a tal ponto obcecado pela necessidade de permanecer o
autor em condição de proeminência em qualquer análise que se faça de uma obra
literária, que chega ao ponto de se perguntar se o que move o leitor não será o
desejo de encontrar dentro do livro, mais do que a história em si, “a pessoa
invisível mas onipresente do seu autor”.
Para
ele, não há espaços vazios. Quando se põe a refletir sobre a sua própria obra,
coloca-se a si mesmo, sem a menor cerimônia, no centro narrativo de tudo o que
escreve, o que vale dizer: não há uma única linha escrita, um único pensamento
formulado por seus narradores, que não esteja de acordo com as idéias do
próprio cidadão português José Saramago. Isto, se por um lado contribui, e
muito, para a formação de uma identidade, uma homogeneidade e uma coerência
ideológica a envolver os narradores do sr. Saramago, os livros do sr. Saramago
e o próprio sr. Saramago, por outro lado diminuiu enormemente as suas, podemos
assim dizer, alternativas de fingimento literário. Tenho a certeza de que ele
não concordaria com isso.
Então,
se o sr. Barthes minimizou e reduziu a uma espécie de desfunção o papel do
autor no manejo com o texto literário, o sr. Saramago, em sua amadora e simplista incursão pela “terra estranha” da teoria
literária, dimensionou a sua importância ao ponto de eleger a si próprio o
centro nervoso de seus romances, desconsiderando radicalmente a mera hipótese
de um narrador. E talvez esteja aí uma das razões pelas quais os portugueses
torçam tanto a boca quando o assunto calha de ser o sr. Saramago. Eu bem sei
que a minha estatisticazinha não é significativa, mas quatro em cada cinco
portugueses a quem pergunto pelo premiado escritor dizem que já não agüentam
mais o seu egocentrismo e as suas verdades. Quem narra a história, seja qual
for o romance do sr. Saramago que se tenha à mão, não é o narrador (ai dele!), mas
ele próprio, o sr. Saramago, e quem emite todos os juízos estéticos e morais
acerca dos personagens e da trama não é tampouco um narrador (ai dele!), mas
também ele próprio, o sr. Saramago, que sequer se dá ao trabalho de se esconder
por detrás de um estilo que seja específico para cada livro.
O estilo é sempre o mesmo. O estilo é o próprio homem, o
sr. Saramago — um estilo, diga-se, extremamente bem cuidado, inteligente e marcado
por uma inegável fluidez narrativa; um estilo que já se tornou a sua marca. E
esse estilo não se caracteriza, como muito já se escreveu, por qualquer
subversão da linguagem, ou mais especificamente da pontuação. Não. A pontuação
do sr. Saramago, salvo um pequeno detalhe acelerador de leitura, é das mais
ortodoxas e certinhas. O que faz o sr. Saramago é simplesmente limitar-se ao
uso de vírgulas e pontos, nunca pontos de exclamação, nunca pontos-e-vírgulas,
nunca travessões, nunca reticências e raramente pontos de interrogação. O
detalhe acelerador a que me referi resume-se a marcar as alternâncias de um
diálogo com uma vírgula e, em seguida, com uma letra maiúscula a estabelecer o
início da fala do outro interlocutor. Isto não é nada diante das estupendas
maluquices gráficas que se lêem por aí.
Esse estilo saramágico foi seguramente uma das três
principais razões pelas quais o sr. Saramago ganhou leitores e prêmios. A segunda
razão deve-se às suas idéias, ou seja, aos argumentos centrais de seus romances,
os chamados plots — engenhosíssimos argumentos
que podem ser expostos, sem exceção, em no máximo três ou mesmo duas linhas. A
terceira razão alimenta-se da potência filosófica e humanística das suas
histórias e dos seus personagens. O sr. Saramago-ele-mesmo (ai dele!) não
constitui, por si, embora ele insista em acreditar nessa possibilidade, razão
alguma para que nós nos apaixonemos pela sua obra. É por isso que talvez não
devamos exigir deste senhor mais nada, a não ser que continue (e se limite...)
a escrever mais e mais obras-primas.
PS. Eu tencionava falar um pouquinho do último Saramago
que li, o romance Todos os nomes, mas acabei espichando este preâmbulo. Para a
próxima.
Muito bom Juvix, como sempre! Esse e os debaixo. Foi minha companhia nessa madrugada de sexta. bjs,
ResponderExcluirJuva,
ResponderExcluiracabei de ler (e rir muito) o seu texto sobre o Sr Saramago. Foi bom pra desmitificar um pouco a figura (sr Saramago-ele -mesmo) dita tão coerente nos meios acadêmicos de onde venho. Vamos torcer pra que ele continue escrevendo ficção. A sra Lispector quando perguntada sobre a função do escritor respondeu que seria falar o mínimo possível. Confesso que quando ouvi a resposta fiquei um pouco decepcionada, mas agora entendi. Adoro os seus textos, parece que estou a lhe ouvir falar... beijos, Viviane
Querido Juva, achei tão interessante fechar o blog de um amigo cujo texto falava, e mal, exatamente sobre Saramago. E ele não é Portugues!
ResponderExcluirEntão abro o seu cãozinho e eis que ele me late : Saramago!!!
Bem, pessoalmente não tenho a menor paciência com teorias, academias e que tais! Nem mesmo, embora mais leve e engraçado, quando é o Juva a escrever!
um beijo.
Viviane,
ResponderExcluirObrigado pelo carinho de dizer que ao me ler parece que me está a ouvir falar. Isso deve ser um dos maiores elogios que se podem fazer ao texto de uma pessoa.
Beijos,
Juva
Angela,
ResponderExcluirE que é que tem paciência com teorias literárias? Talvez tenhamos com aquelas que sejam menos teóricas e mais literárias... Ou não, pelo menos teoricamente...
Beijos,
Juva