1 de janeiro de 2014

"Conto para os que não suportarem"

“Conto para os que não suportarem”, in: Tentados, ed. Cata-Vento.

Antes não éramos tantos. Fomos ficando muitos, e agora a vida é isto, o melhor é esperar a vez para levantar e começar o dia. Aqui no nosso apartamento ainda estamos bem organizados, à exceção de um ou outro que fura a fila, ou melhor, tenta, porque mesmo furar fila, nos dias de hoje, não significa muito. Furar fila furavam os nossos antepassados, quando não éramos tantos, é o que sempre ouvi, ou quando havia algum lugar para ir quando se furava uma fila. É engraçado. É por isso que quando alguém dá a impressão de estar furando uma fila todo o mundo já sabe que é mesmo só impressão, porque a coisa, hoje, está nesse pé: somos tantos que já não há como contar, já não há como medir, já não há como fazer nada, a não ser se manter nas filas e ir levando, sem cair, claro, na tentação. Daqui a pouco, no máximo uma hora e meia, talvez tenha algum ânimo para me levantar; uma pessoa, afinal, tem de dormir deitada, embora as previsões não caminhem nesse sentido. Uma pessoa, afinal, tem de dormir, e ponto, mas o barulho que fazemos é grande; é muita a conversa, e há sempre quem nos compare a formigas, mas não me ocorre que as formigas conversassem, não que eu saiba, nem que se matassem. É muita a conversa, é um fluxo sem fim, porque há sempre gente nova chegando de todos os lados, e o lugar do apartamento onde dormi noite passada não será o mesmo lugar da noite seguinte. O problema nem é mudar o lugar; é ficar tudo sempre, a cada dia, mais apertado, mas a gente se acostuma; no inverno acaba sendo bom, gera calor, mesmo num apartamento caindo aos pedaços. E sem falar nas amizades que surgem; a cada novo dia alguém diferente à frente e alguém diferente atrás e dos lados. As amizades surgem mas também desaparecem. Vão. E quando a gente se afeiçoa é assim, uma coisa que começa triste e depois vai ficando banal. Eu me afeiçoo fácil. Fico pensando se quando não éramos tantos as amizades duravam mais. Isso eu teria de perguntar aos meus bisavós se eles fossem vivos, ou se, uma vez vivos, eu soubesse reconhecê-los. Ainda bem que ainda somos organizados, e nesse ponto aprendemos muito com as formigas, que por sua vez não creio que tenham aprendido nada conosco. Somos organizados aqui neste prédio e especialmente neste velho apartamento, cujos princípios são simples. Primeiro, respeitar, dentro do possível, as filas, porque com as filas a vida fica mais fácil, embora furar filas não faça lá muita diferença, uma vez que somos tantos; e depois, é claro, não cair em tentação, porque, apesar de tudo e de tanto tempo, ainda se acredita que ninguém tem esse direito.

Eu disse que ainda somos organizados, mas o mérito não é nosso; é dos princípios, muito bem pensados nalgum passado mais distante por aqueles que tiveram a capacidade de prever o quadro atual; um passado distante e menos populoso, quando não éramos tantos. Somos organizados, mas nem tanto. Se fôssemos, tudo estaria previsto, como numa bela engrenagem, e não está. O que não previram é que continuaríamos com essa história da tentação. Lá vou eu com filosofias, mas agora tenho de me lavar em banheiros onde se faz tudo coletivamente, e todos debaixo de umas grandes duchas, porque assim dizem que a economia de água é bem maior, com a única divisão sendo ainda mulheres num e homens noutro, e não se fica sozinho um único segundo, e depois pegar as minhas barras de refeição. A minha vida, a nossa vida, assim contada, fica até engraçada, e parece doida e impraticável, mas não é muito, embora seja idiota. Posiciono-me na fila da porta de saída do apartamento, em seguida na dos elevadores, ou das escadas, a escolha é minha, ainda bem que não nos engavetamos tão alto, e finalmente consigo sair do prédio e ganhar as ruas. E, quando sair do apartamento e em seguida do prédio, tudo por aqui ficará mais vazio, ou na verdade um pouco menos ocupado, porque há, afinal, a equipe de sono diurna, formada por todas as pessoas da cidade que vagam à noite mas de dia têm de dormir, nada mais justo. E justiça é comigo mesmo, isso sem falar que é um conceito filosófico, e eu gosto muito de pensar, porque enquanto penso a fila se mexe e nem me dou assim tanta conta da passagem do tempo. Já estou quase dentro da fila da porta de saída, que vai dar na dos elevadores, e as duas, afinal, são a mesma fila. Meu pai me dizia, antes de eu o perder de vista nesta imensa cidade, que ao fim e ao cabo, no fundo de tudo, meu pai era prolixo, a bem da verdade, dizia ele, a fila é uma só. Meu pai estava sendo filosófico quando sustentava isso, deve ser mal de família isso da filosofia, porque, sendo prático, ou sendo adepto da filosofia pragmática, as filas são várias. Cada elevador, por exemplo, tem a sua fila, porque cada andar tem o seu elevador, caso contrário não conseguiríamos nunca entrar num elevador, porque ele já pararia aqui completamente cheio quando o primeiro da fila abrisse a porta. O que seríamos de nós sem os elevadores? Uma pessoa, nesta vida, tem de andar para frente, mesmo que seja numa fila, e numa fila lenta, e também andar para cima e andar para baixo, muitos andares. Essa fila anda ou não anda? deve ser das coisas que mais se ouvem nesta cidade, vasta cidade. Uma coisa importante, eu falei agora há pouco do primeiro da fila, mas isso é modo de dizer, porque o primeiro da fila não existe.

O único lugar onde não existe fila é dentro dos elevadores, quando e onde podemos olhar mais para as caras uns dos outros e até mesmo refazer a fila como der, porque no fundo, como eu já disse, tanto faz. Alguma conversa até se engrena, mas é sempre a famosa conversa de elevador, uma coisa que não muda, por mais que mude a humanidade. É como Deus, que não desaparece. Fala-se do tempo, que nos dias de hoje é sempre o mesmo, nublado; fala-se da possibilidade remota de algum reencontro, e sempre com alguma galhofa, sem a qual ficaríamos bem mais tristes do que já somos, e nessa hora todos riem dentro do elevador; e falam-se das filas, claro, uma forma de se falar de tudo. Quando um elevador quebra há sempre alguém que sabe fazer a coisa voltar a funcionar, em meio a uma roda de muitos de nós, que ficam assistindo a um dos trabalhos mais importantes de que se tem notícia, e chego a pensar com algum espanto divertido que a única coisa que ainda fazemos bem é consertar elevadores, quem diria. E pode parecer que estou sendo filosófico de novo, mas na verdade não, embora eu tenha lá as minhas teorias, e teorias quanto ao andar das filas nunca me faltaram. Na época em que lia, cheguei a entrar no tema, especialmente na teoria das filas relacionada àquilo que nos interessa, que é o fluxo de tráfego para pessoas, ou seja, uma teoria que inclui a definição de final de fila e início da fila seguinte; a forma como se dá o tempo do serviço, se é regular ou não; o número de pontos de atendimento de tal serviço, e os elevadores são aqui um bom exemplo de ponto de atendimento e ainda de final de uma fila para começo de outra; e isto sem falar na capacidade do sistema de manter e ainda incorporar novas filas; na população geral de usuários das filas, que pode ser finita ou infinita, o que no nosso caso é finita mas na prática é infinita, uma vez que somos tantos; e, por fim, na disciplina de atendimento na fila, que no fundo não passa da forma como se organizam os critérios de formação da fila; e mais um blá, blá, blá que eu nem conto. E isto parece ser o ponto fraco (risos) da nossa sociedade, porque, mesmo que estejamos tentando modelos de falha zero, o que acaba prevalecendo é o bom e velho quem chegar na frente é atendido primeiro, há até um termo técnico para isso, embora, na prática, tanto faça, porque ser atendido primeiro não significa nada mais do que entrar em último lugar na próxima fila, seja ela qual for. E, seja ela qual for, o movimento de uma fila é uma ondulação, e sempre será; o corpo mexendo-se em ondas, as pessoas mexendo-se em ondas, uma de cada vez, e não todas a andar ao mesmo tempo, porque afinal não é a fila que anda, mas cada pessoa que dá o seu passo, como uma peça individual de um corpo maior composto de inúmeras peças, e é isso que confere ondulação à coisa, o intervalo de tempo entre a pessoa da frente andar e a que está atrás perceber o espaço vazio à frente e dar então o seu passo adiante. Uma fila não é como um trem e seus vagões; uma fila é como uma lagarta. Teoricamente falando, claro.

Não vou negar que estou sempre à espera de uma oportunidade e alguma coragem. E creio que todos estamos, menos as formigas, porque não creio, embora seja ignorante acerca de formigas, que elas procurassem isolamento para o que quer que fosse. E veja que nem falei numa formiga em particular, mas nas formigas, sempre no plural. Nunca imaginei uma formiga andando sozinha, cantarolando por estradas de terra, a pensar na vida ou na própria morte. Isso faziam os nossos antepassados. As formigas eram o formigueiro, e parece que sempre foram. Uma coisa só. Nós, não. Nós, hoje, somos o nosso bendito e maldito sonho de um mirabolante projeto de voltar a circular como antes, livres. E é por isso que há sempre alguma história misteriosa e heroica acerca de uns poucos milhões que trabalham sem parar na ampliação da cidade, não mais para cima, porque para cima já fizemos tudo o que era preciso e possível fazer, e não há espaço nem logística para se construírem mais prédios, embora isso seja fundamental no sentido de continuarmos vivos, uma vez que não há espaço no chão. Isso pode parecer inacreditável mas não é. O trabalho de ampliação, dizem, é para os lados, embora essa ampliação para os lados, na minha opinião, não passe de conversa de fila, porque nunca conheci ninguém desses poucos milhões que tenha ido ou voltado das fronteiras, o único lugar, de fato, onde se poderia ficar, mesmo que por algum tempo, a sós, e vivo, e assim aliviar um pouco a vontade de se cair definitivamente em tentação. E não passa de conversa de fila o projeto de ampliação das fronteiras porque, também na minha opinião, claro, não há mais fronteiras. A cidade está em todo lado, e, se antes, quando não éramos tantos, havia ainda algum mar, agora já não creio que haja mar algum. E é por isso que, em nosso passado distante, crescemos tanto para cima, sempre para cima, trabalhando sem parar na construção de prédios altíssimos e descobrindo formas de os tornar ainda mais altos. Nesse ponto teríamos muito a ensinar às formigas se as formigas ainda existissem.

Falar da inacreditável altura dos prédios que construíram os nossos antepassados é uma forma de se falar da morte, e falar da morte é ser prático, e não filosófico, podendo-se falar da morte de duas formas. Se por um lado é bom sair enfim dessas torres de gavetas, depois de enfrentar todas as filas dos apartamentos e elevadores, e ainda a fila para se sair às ruas, que é uma confluência dos amontoados que saem de todos os elevadores; ou seja, se por um lado é bom botar a cabeça para fora após tanto tempo esperando a vez de sair dos prédios, por outro lado vive-se o perigo de se estar ao ar livre, o que significa, para os mais prevenidos, ficar olhando o tempo todo para cima, já que a morte vem de cima. Por mais numerosas que sejam as medidas de segurança, como as grades nas raras janelas e os picos eletrificados (os prédios não possuem, no topo, áreas planas e se vão afunilando ao ponto de se tornar agulhas espetando o céu), há sempre alguém que desiste e se atira, e, atirando-se, além de se matar a si mesmo, ainda mata um punhado de nós, que estamos aqui em baixo na fila, aguardando a vez de seguir em frente. E abre-se um clarão no chão, e algumas filas se desfazem até que tudo se reordene, e novas filas se formam, embora bem mais lentas, até que o susto e a curiosidade diante de alguns corpos no chão desapareçam; e novamente não se vê o chão, apenas os pés de nós todos, que somos tantos, embora antes não fôssemos. Não sei se é filosofia barata de minha parte, mas já não fico a olhar para cima como antes, quando era mais jovem e acreditava que suportaria tudo. Nunca ninguém me caiu por cima, e nem creio que cairá; e, se afinal cair, não vai ajudar nada eu estar com o nariz pro céu, achando que poderia desviar de alguém despencando feliz, e é por isso que minha vida é mais com a cabeça para baixo do que para cima, a observar e tentar medir a velocidade com que andam os pés que vejo à minha frente e que vou seguindo com os meus, o que nada mais é do que viver o andar da lagarta.


Mas há um dia em que o andar da fila ou a cidade ou as fronteiras ou o mar e o horizonte e o maldito sonho de uns poucos e benditos milhões de heróis já não importam de modo algum, porque tudo o que se deseja de imediato são alguns instantes a sós, alguns segundos em silêncio e a sós. Quantos segundos, ou mesmo minutos? Isto irá depender da absurda altura do prédio e das medidas de segurança e do estado das grades nas raras janelas e de alguém ao lado ou atrás tentar me impedir ou não; para tudo dá-se um jeito, não vou negar que estou sempre à espera de uma oportunidade e alguma coragem — hoje, mais de oportunidade do que de coragem, porque o desejo afinal de cair em tentação, de ficar, mesmo que por uns bons segundos, ou mesmo mais de um minuto, o máximo que puder, dentro de um silêncio veloz e a sós, sentindo o vento forte nos cabelos e pelo corpo inteiro, a força da gravidade, os braços abertos e os olhos o tempo todo fechados para não ver o formigueiro, lá embaixo, ficando cada vez maior; esse desejo é mais forte do que o remorso e o arrependimento e a culpa que não vou ter tempo de sentir quando chegar, saciado e feliz, ao chão.

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