1 de novembro de 2012

"Portugalzinho e o seu (meu) coração"

Um belo dia, em Lisboa, decidi ver e viver acontecimentos, um deles relativo ao meu coração, cuja válvula aórtica não é lá muito cristã no seu vai-e-vem de abrir e fechar. Terei um dia, quem sabe, de substituir a dita cuja por uma mecânica, tomar uns remedinhos, fazer exames periódicos e pronto. O cardiologista me disse, escondendo um quase-sorriso:

— O senhor já reparou na base do seu pescoço?

— O que é que tem a base do meu pescoço, senhor doutor?

— Ela pulsa. Veja — e me estendeu um espelhinho.

E eu vi, mesmo na base do pescoço, bem no meio, entre as clavículas, o vai-e-vem do coração pulsando sob a pele.

— Puxa... a pele se mexe para cima e para baixo...

— Pois se mexe...

Eu nunca havia reparado nisso, e nunca ninguém havia reparado nisso. Tratava-se de uma peculiaridade física que eu, aos 37 anos, acabava de descobrir em mim mesmo. Fiquei sem saber o que dizer, e a única coisa que me veio à cabeça e que consegui comentar foi:

— Nunca poderei fazer o papel de um morto no cinema…

O cardiologista, olhando-me pela primeira vez com alguma curiosidade, perguntou:

— O senhor é ator?

— Ator? Não, não... Sou escritor... Quer dizer...

— Escritor... Ah...

E assim terminou a consulta.

A secretária do senhor cardiologista me perguntou se eu queria que ela chamasse, pelo telefone, um táxi, porque ali passavam poucos táxis.

— Não, minha senhora. Obrigado. Eu sou um rapaz de sorte.

E, de fato, mal pisei a rua e já lá vinha um táxi. Fiz um sinal, entrei. Dobramos a primeira rua e caímos num grande congestionamento próximo à praça do Marquês de Pombal, em frente à avenida da Liberdade.

E o motorista do táxi, como se estivesse com tudo aquilo entalado na sua garganta há muitos anos, desandou a fazer o que muitos portugueses gostam de fazer (e o fazem com graça e inteligência): reclamar. O congestionamento no qual entramos e dentro do qual já estávamos metidos até o pescoço era, percebi imediatamente, apenas um pretexto para a sua digressão.

— O senhor veja, o senhor é brasileiro, o senhor há de me entender. Isto do jeito que está não funciona! — e ele colocou a mão esquerda para fora, num gesto que tinha a intenção de abarcar Lisboa inteira, Portugal todo ele. — Isto do jeito que está não anda a correr nada bem! O senhor olha aí para os lados, e o que o senhor vê? Vê um português por carro… Um carro por português. Isto assim não vai nada longe! É por isto que este país está assim, e esta cidade está assim, e este povo está assim… Isto aqui não corre nada bem! O senhor veja a quantidade de carros aqui à volta…

— Isto é em todo o mundo… — consegui dizer.

— Mas... Ó, meu senhor... Portugal é um país pequeno. Nós somos pequenos... Nós somos pequeninos. Isto assim não funciona! O português tem de saber viver na medida da sua possibilidade. E os transportes públicos? E os metros, os autocarros e os comboios? O senhor ‘tá a ver? Um carro por pessoa! O senhor sabe como isto aqui estará daqui a uma data d’anos? Não sabe… Pois não queira saber, hã… Ó, meu senhor. O senhor é brasileiro, o senhor há de me entender. Vou lhe dizer assim, o senhor veja: o português ganha, por mês, cinquenta, e gasta cinquenta e dois, e para obter estes dois ele vai ao banco e pede quatro de empréstimo, e gasta os cinquenta e seis e ainda começa a dever três no início do mês para o banco… Então o que é que temos? Temos um português que ganha cinquenta e gasta, ao fim e ao cabo, cinquenta e nove!

— Pois — disse eu.

— Pois — disse ele. E seguiu: — Isto é a bola de neve! A bola de neve portuguesinha... E ainda há quem diga por aí que Portugal tem condições... Portugal não tem condições, meu senhor. E o senhor sabe por quê? Porque o português não trabalha! Sim, isto mesmo! O português não trabalha! Isto aqui está tudo encostado, o dinheiro que temos aqui é o dinheiro da Comunidade. Agora o senhor vá conhecer o português fora de Portugal... O senhor é brasileiro, o senhor há de me entender... O português fora de Portugal é um bravo!

— Pois — disse eu, pensando nos portugueses donos da padaria Rio-Lisboa, ali no Leblon, no Rio de Janeiro. Pensei na padaria que vi e na qual entrei durante toda a minha infância e toda a minha adolescência, e me dei conta de que nunca vi aquela padaria Rio-Lisboa fechada em toda a minha vida… Estará fechada no dia do Juízo Final? Já posso ver, no dia do Juízo Final, aquela fila de gente à espera de levar o derradeiro pão-nosso-de-cada-dia para a vida eterna... E acrescentei ao meu comentário um outro comentário: — Pois. O português lá fora é um bravo... Mas aqui dentro também...

— O senhor não me está a levar a sério... Posso ver que não… Mas o senhor é brasileiro, e o senhor há de me entender... É como eu lhe digo: o português cá de dentro se encosta no Portugal que tem. O português de fora trabalha como um verdadeiro português, porque lá fora ele não tem o seu Portugalzinho para se encostar... O português lá fora é um cidadão do mundo! Adapta-se, corre atrás, dá o seu sangue e não fica à espera. É um bravo! Aprende as línguas, sai à rua, anda, como faz toda a gente, nos transportes públicos, e não fica com o reizinho na barriga, que é como vocês lá no Brasil dizem, não é mesmo? Se calhar nós é que inventamos a frase… O gajo tem o rei na barriga… Não é assim? É o caso do português cá de dentro. O português cá de dentro é o hóspede do seu Portugalzinho.

— Pois — disse eu, retornando aos comentários sintéticos.

— Pois — disse ele. E seguiu: — E o que é que faz este português de dentro, a encostar-se no seu Portugalzinho, a viver dentro do seu Portugalzinho como se estivesse num hotel?... Em vez de trabalhar e de dar o seu sangue, como faz o português de fora, que está no estrangeiro a ganhar a vida, o que é que faz o português que vive cá em Portugal, em vez de trabalhar? O que é que faz este português, dentro do seu Portugalzinho pequenino? Faz a única coisa que sabe fazer: reclamar e reclamar e reclamar... Isto, meu senhor, não está a correr nada bem...

— Pois — disse eu, a pensar, e enquanto pensava ia olhando, pela janela, para a cidade mais maravilhosa do mundo.


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