Um belo dia, em Lisboa, decidi ver e
viver acontecimentos, um deles relativo ao meu coração, cuja válvula aórtica
não é lá muito cristã no seu vai-e-vem de abrir e fechar. Terei um dia, quem
sabe, de substituir a dita cuja por uma mecânica, tomar uns remedinhos, fazer
exames periódicos e pronto. O cardiologista me disse, escondendo um quase-sorriso:
— O senhor já reparou na base do seu
pescoço?
— O que é que tem a base do meu
pescoço, senhor doutor?
— Ela pulsa. Veja — e me estendeu um
espelhinho.
E eu vi, mesmo na base do pescoço,
bem no meio, entre as clavículas, o vai-e-vem do coração pulsando sob a pele.
— Puxa... a pele se mexe para cima e
para baixo...
— Pois se
mexe...
Eu nunca havia
reparado nisso, e nunca ninguém havia reparado nisso. Tratava-se de uma
peculiaridade física que eu, aos 37 anos, acabava de descobrir em mim mesmo.
Fiquei sem saber o que dizer, e a única coisa que me veio à cabeça e que consegui
comentar foi:
— Nunca
poderei fazer o papel de um morto no cinema…
O
cardiologista, olhando-me pela primeira vez com alguma curiosidade, perguntou:
— O senhor é
ator?
— Ator? Não,
não... Sou escritor... Quer dizer...
— Escritor...
Ah...
E assim
terminou a consulta.
A secretária
do senhor cardiologista me perguntou se eu queria que ela chamasse, pelo
telefone, um táxi, porque ali passavam poucos táxis.
— Não, minha
senhora. Obrigado. Eu sou um rapaz de sorte.
E, de fato,
mal pisei a rua e já lá vinha um táxi. Fiz um sinal, entrei. Dobramos a
primeira rua e caímos num grande congestionamento próximo à praça do Marquês de
Pombal, em frente à avenida da Liberdade.
E o motorista
do táxi, como se estivesse com tudo aquilo entalado na sua garganta há muitos
anos, desandou a fazer o que muitos portugueses gostam de fazer (e o fazem com
graça e inteligência): reclamar. O congestionamento no qual entramos e dentro
do qual já estávamos metidos até o pescoço era, percebi imediatamente, apenas
um pretexto para a sua digressão.
— O senhor
veja, o senhor é brasileiro, o senhor há de me entender. Isto do jeito que está
não funciona! — e ele colocou a mão esquerda para fora, num gesto que tinha a
intenção de abarcar Lisboa inteira, Portugal todo ele. — Isto do jeito que está
não anda a correr nada bem! O senhor olha aí para os lados, e o que o senhor
vê? Vê um português por carro… Um carro por português. Isto assim não vai nada
longe! É por isto que este país está assim, e esta cidade está assim, e este povo
está assim… Isto aqui não corre nada bem! O senhor veja a quantidade de carros
aqui à volta…
— Isto é em
todo o mundo… — consegui dizer.
— Mas... Ó,
meu senhor... Portugal é um país pequeno. Nós somos pequenos... Nós somos
pequeninos. Isto assim não funciona! O português tem de saber viver na medida
da sua possibilidade. E os transportes públicos? E os metros, os autocarros e
os comboios? O senhor ‘tá a ver? Um carro por pessoa! O senhor sabe como isto
aqui estará daqui a uma data d’anos? Não sabe… Pois não queira saber, hã… Ó,
meu senhor. O senhor é brasileiro, o senhor há de me entender. Vou lhe dizer
assim, o senhor veja: o português ganha, por mês, cinquenta, e gasta cinquenta
e dois, e para obter estes dois ele vai ao banco e pede quatro de empréstimo, e
gasta os cinquenta e seis e ainda começa a dever três no início do mês para o
banco… Então o que é que temos? Temos um português que ganha cinquenta e gasta,
ao fim e ao cabo, cinquenta e nove!
— Pois —
disse eu.
— Pois —
disse ele. E seguiu: — Isto é a bola de neve! A bola de neve portuguesinha... E
ainda há quem diga por aí que Portugal tem condições... Portugal não tem
condições, meu senhor. E o senhor sabe por quê? Porque o português não
trabalha! Sim, isto mesmo! O português não trabalha! Isto aqui está tudo
encostado, o dinheiro que temos aqui é o dinheiro da Comunidade. Agora o senhor
vá conhecer o português fora de Portugal... O senhor é brasileiro, o senhor há
de me entender... O português fora de Portugal é um bravo!
— Pois —
disse eu, pensando nos portugueses donos da padaria Rio-Lisboa, ali no Leblon, no
Rio de Janeiro. Pensei na padaria que vi e na qual entrei durante toda a minha infância
e toda a minha adolescência, e me dei conta de que nunca vi aquela padaria
Rio-Lisboa fechada em toda a minha vida… Estará fechada no dia do Juízo Final?
Já posso ver, no dia do Juízo Final, aquela fila de gente à espera de levar o
derradeiro pão-nosso-de-cada-dia para a vida eterna... E acrescentei ao meu
comentário um outro comentário: — Pois. O português lá fora é um bravo... Mas
aqui dentro também...
— O senhor
não me está a levar a sério... Posso ver que não… Mas o senhor é brasileiro, e
o senhor há de me entender... É como eu lhe digo: o português cá de dentro se encosta
no Portugal que tem. O português de fora trabalha como um verdadeiro português,
porque lá fora ele não tem o seu Portugalzinho para se encostar... O português
lá fora é um cidadão do mundo! Adapta-se, corre atrás, dá o seu sangue e não
fica à espera. É um bravo! Aprende as línguas, sai à rua, anda, como faz toda a
gente, nos transportes públicos, e não fica com o reizinho na barriga, que é
como vocês lá no Brasil dizem, não é mesmo? Se calhar nós é que inventamos a
frase… O gajo tem o rei na barriga… Não é assim? É o caso do português cá de
dentro. O português cá de dentro é o hóspede do seu Portugalzinho.
— Pois —
disse eu, retornando aos comentários sintéticos.
— Pois —
disse ele. E seguiu: — E o que é que faz este português de dentro, a
encostar-se no seu Portugalzinho, a viver dentro do seu Portugalzinho como se
estivesse num hotel?... Em vez de trabalhar e de dar o seu sangue, como faz o
português de fora, que está no estrangeiro a ganhar a vida, o que é que faz o
português que vive cá em Portugal, em vez de trabalhar? O que é que faz este
português, dentro do seu Portugalzinho pequenino? Faz a única coisa que sabe
fazer: reclamar e reclamar e reclamar... Isto, meu senhor, não está a correr
nada bem...
— Pois —
disse eu, a pensar, e enquanto pensava ia olhando, pela janela, para a cidade
mais maravilhosa do mundo.
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