2 de agosto de 1997

"Duas culturas, uma tragédia"

"Duas culturas, uma tragédia — Entre a Inglaterra e a África do Sul, um casal perde suas raízes e enfrenta seus fantasmas", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 de agosto de 1997.

Resenha sobre o livro Mudança de clima, de Hilary Mantel, ed. Record, trad. Maria dos Anjos Santos Rouch.

Inglaterra. O clima no condado inglês de Norfolk é frio, o ar é úmido e o mar ao pé dos rochedos tem cor de chumbo. Quando o olhar chega ao horizonte, não há horizonte, mas uma mistura cinzenta de nuvens geladas, como um véu. Embaixo, na terra, a vida é pacata. Norfolk é um polvilhado de igrejas e pequenas propriedades, a população é rural e religiosa, há muitas fazendas, separadas por extensas planícies, e um comércio local de produtos hortigranjeiros e miudezas para turistas. Vive-se para dentro e mastigam-se segredos — engolidos em silêncio junto com o chá, que sai às cinco.

África do Sul. O céu sobre os morros arredondados se inunda da luz do sol e fica violeta quando toca as pedras. Impossível não imaginar que, em algum lugar, lá estarão, intocados, as savanas, os horizontes a perder de vista, a girafa, o elefante e o bom selvagem. Mas na cidade de Elim, ao pé de Pretoria, o clima é quente e tenso. Há muita confusão nas ruas. O bôer — macho adulto branco holandês — está no comando há quinhentos anos, desde o século XV, época em que chegou e ocupou grandes regiões do sul da África, julgando-se dono da terra e dos que lá viviam. A educação está restrita às elites brancas, e a manutenção da miséria, do caos social e da ignorância cumpre a grosseira função de desmantelar qualquer tentativa da população negra de organizar-se em torno de uma identidade ainda a ser novamente criada, uma vez que já não mais existe.

Entre Inglaterra e África do Sul, emergindo de geografias sociais e políticas tão diversas está a história de um jovem casal de missionários ingleses, Ralph e Anna Eldred — ambos pertencentes à igreja anglicana, ambos nascidos em famílias ortodoxas e conservadoras (leia-se anti-darwinistas radicais), ambos ansiosos por sair de casa. Casados, vão Ralph e Anna para a África do Sul, a serviço da sociedade missionária a que pertencem, fazer o bem, não importando a quem, perdoando sete vezes setenta e amando o próximo como (muito mais do que) a si mesmos.

Os momentos mais dramáticos de sua permanência na confusa cidade de Elim, somados à descrição do clima que envolve a família Eldred em sua volta à Inglaterra e no desenrolar da vida no minúsculo condado de Norfolk, são o ponto alto deste Mudança de clima (A change of climate), sexto romance de Hilary Mantel. Esta inglesa de 45 anos nasceu em Derbyshire, trabalhou no Oriente Médio e viveu cinco anos na África do Sul. Ganhou por seus “escritos de viagem” o prêmio Shiva Naipaul, em 1987, e tem sido bastante elogiada por jornais e suplementos literários ingleses. Um de seus romances, A place of greater safety, recebeu do Sunday Express o prêmio de livro do ano e do Sunday Times o de melhor romance em 1992. O irresistível senso de humor tipicamente britânico que evapora de seu texto transforma qualquer melodramatismo narrativo em um pensamento inteligente, uma observação acurada, um quase aforismo.

Não se pode afirmar que Mudança de clima seja um romance autobiográfico. Provavelmente não. Mas cinco anos na África do Sul não deixam ninguém indiferente, e seria ingênuo crer que Mantel não tenha recapturado, não os fatos que viveu em sua experiência sul-africana, que estes, os fatos, mudam com o tempo e o vento e são quase incomunicáveis para quem não os viveu; mas que não tenha recapturado neste romance e principalmente no personagem de Anna, mulher de Ralph, a sensação do estranhamento. Não apenas o estranhamento de sentir-se estrangeiro no lugar para onde se foi, mas, em especial, sentir-se estrangeiro no lugar de onde se veio, quando se volta.

Depois de um bom tempo na cidade de Elim, numa espécie de lua-de-mel às avessas, a tentar remendar o irremediável, sem infra-estrutura e a viver numa casa aos pedaços, Ralph e Anna acabam metidos num mal-entendido que os leva à cadeia. Mas a cadeia não foi nada em relação ao mau bocado que passaram depois — um segredo muito bem trancado que os perseguiu por toda a vida; um episódio, chocante sob todos os aspectos, que não poderia ser revelado, sob pena de se desmantelar toda a família Eldred, incluídos os quatro filhos do casal.

Este romance possui a rara qualidade de não ser simplista ao debruçar-se sobre o que se achou por bem chamar “o outro”. Afirma, sim, desde o título, a existência de uma diferença, uma mudança de clima, mas não cai na armadilha de caracterizar por estereótipo dois ambientes e depois submetê-los a uma apreciação que se limite a compará-los. Através da tragédia vivida pelos Eldred, formaliza e polariza, na pele de Ralph e Anna, dois velhos pontos de vista acerca de uma importante questão: até que ponto estão as diversidades culturais — incluídos os costumes, as tradições e as práticas sociais e religiosas — protegidas por uma espécie de imunidade que as isentaria de prestar contas aos chamados valores universais que resguardariam os direitos fundamentais do homem e a dignidade da pessoa humana?

Trecho: 

“— Mas Julian me contou, você sabe... sobre a prisão.

Ralph balançou a cabeça numa negativa:

— Isso não foi nada.

(...)

— Quando vocês estavam presos, vocês foram maltratados?

— Não, eu já disse, isso não foi nada. Se tivéssemos sido muito maltratados, teríamos voltado para casa depois de libertados, mas nós não voltamos, fomos para Bechuanaland. Continuamos por lá.

— Isso é um pouco misterioso. Para Julian. Ele fica imaginando por que vocês não falam sobre o assunto. Ele inventa razões, na cabeça dele.

— Kit passou por uma fase, você sabe como as crianças se comportam... Ela queria nos transformar em heróis. Ela não entendia por que eu não participava dos movimentos anti-apartheid, unindo-me às pessoas que sentavam na rua em frente à embaixada sul-africana.

— E por que você não participava?

— Por que é muito mais complicado do que pensam essas pessoas estúpidas que desfilam pelas ruas com faixas. Fico profundamente irritado de ver essas pessoas usando a África do Sul para se sentirem bem. Tão preocupadas com a moral de um país que nunca viram, com a vida de pessoas das quais não sabem nada.” (p. 171)

21 de junho de 1997

"Estranha história de amor"

"Estranha história de amor — O romance do espanhol Gonzalo Torrente Ballester é uma longa e silenciosa carta apaixonada", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 de junho de 1997.

Resenha sobre o livro A ilha dos jacintos cortados, de Gonzalo Torrente Balester, ed. Record.

Gonzalo Torrente Ballester é de La Coruña e nasceu em 1910 — exatos 22 anos após o nascimento de Fernando Pessoa. Estava, aos 25, formadíssimo em filosofia e letras pela Universidade de Santiago de Compostela. Escreveu muito: ensaios, peças, novelas, alguns livros de história e romances. Em 1962, teve de mudar de vida. A presença de seu nome numa carta de apoio às reivindicações de grevistas asturianos não foi propriamente simpática aos olhos do governo espanhol. Convidado a abandonar seu trabalho na imprensa e no rádio, segue para a Universidade de Albany, nos Estados Unidos, onde ensinará literatura espanhola por vários anos. Destacam-se, entre seus romances, a trilogia Los gozos y las sombras e O rei pasmado e a rainha nua. Ganhou o Prêmio Cervantes, o Prêmio da Crítica e o Prêmio Nacional de Literatura — este por duas vezes.

A segunda vez, 40 anos depois, veio com A Ilha dos Jacintos Cortados, que reúne em si as cores e os sons do romance de amor que Ballester poderia ter escrito aos 20 e que acabou por escrever somente aos 70 anos. As cores, porém, não são gritantes, nem os sons. Tampouco é cega a paixão. O romance tem a forma de uma longa e silenciosa carta, cujo tom é o da melancolia sem choro e do erotismo sem carne. O autor da carta é um erudito professor de literatura, que ama uma estudante grega de nome Ariadna, que, porém, não o ama, mas sim a outro, o historiador Alain Claire, que não entra na história.

A carta de amor — cujo peso, volume e detalhamento a transformam num diário — começa a ser escrita, às escondidas, uma semana após a chegada de ambos, remetente e destinatário, à cabana alugada de uma ilha próxima à universidade. Lá, na Ilha dos Jacintos Cortados (The Isle of The Cut Hyacints), no Indian Lac, durante os três meses do outono norte-americano, Ariadna e o professor de literatura (não se lhe sabe o nome porque não assinou sua carta) encontram silêncio e privacidade para melhor se conhecerem e se ajudarem. Entre ambos, um mesmo problema: o historiador Alain Claire — que, por sua vez, tem dois: além de impotente, ousou escrever um livro em que investiga e tenta demonstrar a idéia de que Napoleão Bonaparte não passou de uma fraude, uma biografia forjada, uma ficção em branco. Tornaram-se, Claire e sua tese, um bom motivo para o escárnio de seus pares acadêmicos.

O professor de literatura, no entanto, estimulado pela possibilidade de exibir-se para o seu amor mediterrânico com todas as letras de sua deliciosa eloqüência, decide acreditar na hipótese de Claire e até mesmo “prová-la”. Lança mão de técnicas de pesquisa científica pouco ou nada ortodoxas e empreende, ali, na rústica cabana alugada da Ilha dos Jacintos Cortados, uma viagem no tempo, por meio da simples, mas atenta, contemplação das chamas da lareira. Saber decifrá-las é saber que passado, presente e futuro são instâncias artificialmente delimitadas, a correr para a frente, sim, mas paralelas, o que vale dizer: simultâneas.

É o início do que podemos chamar de “interpolações mágicas”, segundo uma expressão do próprio Ballester — verdadeiras frestas por onde escorre, lentamente e sem qualquer compromisso com a linearidade dos aconteceres, uma segunda história, de adultérios, poesia e revoluções, a partir da qual se poderá assistir ao momento exato em que a idéia de se inventar um imperador para a França foi plantada. Começa, então, um outro romance, a passar-se em outro tempo e em outra ilha, de La Gorgona esta, “certo penedo resplandecente que emerge nas rotas do Mediterrâneo central, mais história que terra, (...) toda a história que cabe num punhado de rochedos amontoados, Ulisses, Enéias, os Templários e logo conto o resto”.

O resto, porém, não é o resto, mas a potência incansável da imaginação. Além das belas frases, longas, ritmadas e precisas, do verossímil encadeamento dos diálogos e do inegável fôlego narrativo de Ballester — qualidades que se repetem na tradução de Ari Roitman —, A Ilha dos Jacintos Cortados sugere a recriação ininterrupta como uma possibilidade a mais para o conhecimento das coisas. Esta sugestão faz lembrar o tão discutido problema acerca do conceito de arte e chama a atenção para a velha idéia de arte como via de conhecimento, um conhecimento não mensurável. Veja-se a História do cerco de Lisboa, de Saramago, onde um revisor acrescenta, num livro de História, a palavra “não”. Sua tarefa: dar um sentido histórico-narrativo àquele “não”. Seu método: recontar as histórias que estão dentro da História. A empreitada a que se entrega o professor de literatura neste romance dos Jacintos Cortados é também uma materialização do programa de Nietzsche: considerar a ciência pelo ponto de vista da arte e a arte pelo ponto de vista da vida. É com os olhos de um “bruxo” que o professor se debruça sobre a hipótese histórica de Claire. Acompanha pela lareira de sua cabana o desenrolar de um passado remoto e reinventa-o, com todas as artes, em seu diário. Se assim não fosse, de que outro modo poderia o professor chegar ao coração de Ariadna ou provar, por palavras tortas, a inexistência de Napoleão?

Primeira sugestão para trecho:

“Estou certo de que algum dia o método de Claire, essa multiplicidade de técnicas ali utilizadas pela primeira vez na pesquisa histórica, virá a ser casual, e algum dia terá também envelhecido e será superada; hoje sua novidade é tão abrupta, tão desafiante, que não me surpreendeu a repulsa com que foi recebida e a chacota geral com que a maioria manifestou sua pessoal e irreparável rotina. Naquela noite, Ariadna — você lia —, fomos progressivamente tomados por um discurso de estrutura rigorosamente matemática e por uma palavra de expressão rigorosamente poética, de modo que o resultado foi a mais perfeita embriaguez, a mais inconcebível, da inteligência e da sensibilidade. Reconheço que deixou de me importar o que era discutido: se Napoleão foi algo mais que uma palavra favorecida, embalada, amamentada pela necessidade política.”


Segunda sugestão para trecho:

“Gostamos da cabana. Não sei qual dos dois gostou mais, porém o seu entusiasmo parecia maior que o meu, e não pelo que ia ganhar de comissão, dez por cento do aluguel, mas pela genuína vontade que você tinha, e ocultava, de passar ali uns dias, ver como o outono se infiltrava no tempo, apoderando-se das folhas do bosque uma a uma: isso se notava nos seus olhos, no ágil movimento das mãos, principalmente na sua voz, quando você elogiava as virtudes e méritos da Ilha e do refúgio, lugar também para o amor, não só para o estudo e o recolhimento. Foram uns minutos em que Claire, se estivesse ali, teria sorrido ligeiramente com aquele sorriso de anglo-saxão prepotente diante dos povos inferiores e, caso fosse além do sorriso, (...) teria lançado um olhar que a julgaria uma incorrigível meridional, criticando todo movimento e expressividade, justamente o que mais louvo em você, a voz que sobe e se quebra, e o que suas mãos dizem enquanto a língua se recreia.”

16 de maio de 1997

"Pulsões da alma sem retoques"

"Pulsões da alma sem retoques — Kazantzákis mistura prosa poética e exercícios espirituais para falar da fé e de prisões que libertam", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 de maio de 1997.

Resenha sobre o livro Ascese, de Nikos Kazantzákis, ed. Ática, introdução e notas de José Paulo Paes.

Este é um pequeno grande livro. É um tratado filosófico e um exercício, teoria e prática; uma ficção de versículos numa prosa sem história, com personagens abstratos, metáforas e animismos; um poema em prosa poética; uma voz de mestre a suscitar em ti, leitor-discípulo, o ânimo necessário para assuntarem, juntos, graves quesitos relativos à existência de Deus, à existência da própria voz que suscita; deste que lê e mesmo deste que aqui escreve.

A narrativa de Ascese, Os salvadores de Deus, do cretense Nikos Kazantzákis (Alexis Zorba, O pobre de Assis, A última tentação), não emparelha com a dos tratados filosóficos convencionais — escritos com a temperança do pensador que se põe a salvo no conforto do método científico —, mas sim com a pujança e a exclamatividade dançante de textos como Assim falava Zaratustra e A origem da tragédia, de Nietzsche, livros que traduziu, juntamente com O riso, de Bergson; A divina comédia, de Dante; o Fausto, de Goethe; além da Ilíada e da Odisséia, de Homero, estas últimas, traduções dentro do idioma grego, do arcaico para o moderno.

A identificação do assunto-cerne desta singular “peça” literária — belamente traduzida e apresentada por José Paulo Paes — principia pelo título. “Ascese” é palavra grega que designa “exercício”. Sobreviveu à areia do tempo e ainda tange em seu sentido primeiro: conjunto de práticas que apontam para um crescimento espiritual rumo a uma espécie de libertação, cuja essência está na união indissolúvel com Deus, que é a mesma coisa que o leite, o sangue e o pus, o inseto e a mais singela idéia — “Joelhos encostados no queixo, (...) sentado de cócoras, feito uma bola, Deus está encerrado dentro de cada partícula de carne”.

Encerrado e ferido, este Deus, já desenfeitado da expressão plácida e altiva que outros tempos e outros povos Lhe atribuíram, sem as certezas e bondades que julgamos possuísse, este Deus, que tem esse nome “porque só esse nome comove, desde tempos imemoriais, nossas entranhas até o fundo”, este Deus grita por socorro, carece do homem na exata medida em que carecemos Dele. E a voz narrativa de Ascese convoca-nos a todos, seres moventes e vegetais, para uma luta inglória — contra a estagnação e o conformismo, pela libertação, terrena e divina.

Deus berra e quer brigar. Mas Sua natureza não é onipotente o bastante para que baixemos as armas e O deixemos, a Ele, ao deus-dará. Deus não dará; quer receber; “não se importa nem com seres humanos nem com animais, muito menos com virtudes ou idéias. Ama-os por um instante, esmaga-os para sempre e segue adiante”. Sua natureza não é bondosa, não é onisciente, sequer salvadora é; porém pasmada na exata medida em que pasmados estamos diante do caos. Verdadeiros salvadores de Deus seremos se cumprirmos, heroicamente, nossa missão, possivelmente impossível, de lutar e tombar; tombar e entregar a lança ao vizinho.

Propondo uma espécie de “infiltração” entre natureza humana e divina — proposta que prescinde de uma religião organizada em dogmas e pressupostos salvacionistas, protagonizada por um Deus que “concebe, fecunda e mata”, não redime, não ajuda quem cedo se levanta, não tem identidade estática e que não é nada sem a ajuda do homem —, não é estranho imaginar que Kazantzákis tenha enfrentado problemas com a Igreja Ortodoxa de Atenas. Considerado um “inimigo da fé”, recusaram-lhe enterro com direito a padre oficial. Foi sepultado onde nasceu: Heráklion, capital de Creta. Seu auto-epitáfio é um eco do que pensava e sentia acerca do sentido da vida e da falta de sentido da morte: “Não temo nada. Não espero nada. Sou livre”.

“Pegamos uma tocha e corremos. Por um instante, nosso rosto se ilumina, mas prontamente passamos a lanterna a nosso filho e em seguida sumimos no Hades.” Lá, entre rochedos, fogo e ranger de dentes, tropeçamos na pedra de Sísifo e aprendemos mais sobre a natureza intérmina das batalhas, as verdadeiramente grandes. Kazantzákis contorna, em Ascese, a silhueta do herói, o que avança descalço sobre os limites da própria humanidade, se equilibra sem medo no olho do furacão e, de pé, balança a cabeça, a dizer sim para o sofrimento do mundo e seu terrível engano. O próximo passo é a dança; e dançando Sísifo refaz seu eterno retorno ao rochedo, para, mais uma vez, e mais outra, (re)carregar ao topo sua pedra e sua danação. A pedra, ao fim e ao cabo, rola para baixo, e o castigado desce — para novamente subir. Camus, em O mito de Sísifo (o título original, Le mythe de Sisyphe, forma uma bela homofonia com O mito decisivo), considera o momento da descida crucial para o bom entendimento da natureza absurda de seu herói. É descendo que Sísifo se toca de sua desgraça. Neste sentido, a consciência de seu tormento o faz superior ao próprio destino. Tivesse ele a esperança, mesmo mínima, de que seu trabalho teria algum fim, sua condição não seria trágica por excelência.

É aqui, na consciência ardida do absurdo, que Ascese se nos apresenta como algo mais que mero exercício místico-contemplativo. O guerreiro de Kazantzákis, com sua luta incerta pela salvação de Deus, e Sísifo — “proletário dos deuses”, pedreiro dos pedreiros — adquirem uma identidade palpável e atual. Podemos estar falando da classe operária de hoje e de ontem, a entregar-se em todos os dias de sua vida a uma tarefa que não é sua nem tem sentido senão nela mesma, quando tem — absurda portanto. Podemos estar falando também de outras coisas, como deste outro grito de guerra: “Não há nada a fazer, mas nós o faremos”, que não é de Kazantzákis, nem de Deus; é de Hemingway, e bem poderia ser de todos nós.

1 de janeiro de 1997

“A palavra é imortal" / “O chef das palavras e o tempero do pensamento"

1997
VASSALO, Márcio, “A palavra é imortal — João Ubaldo Ribeiro aponta preconceito intelectual contra o humorismo e diz que escrever é um ato tão íntimo quanto fazer sexo”. “O chef das palavras e o tempero do pensamento — um dos autores mais traduzidos do Brasil, João Ubaldo Ribeiro mostra os ingredientes de uma conversa que alimenta a alma”, Lector, ano III, nº 24, 1997, p. 8-9.

Sobre humor:

JUR: “Monteiro Lobato é considerado menor porque está enquadrado no gênero infantil. Por sua vez, um intelectual de alto nível como Millôr Fernandes é subvalorizado porque é humorista. Ele não é considerado um escritor sério. (...) É uma grande maluquice. Recentemente, gravei uma participação no programa Casseta & Planeta. Fiz o papel de um (...) porteiro de um prédio inteligente. O prédio é tão inteligente que o porteiro é da Academia Brasileira de Letras. (...) Existe uma discriminação intelectual contra o humorismo”.

JUR: “A realidade é que não se aceita que um escritor abdique daquela postura grave, daquela cara séria que as pessoas estão acostumadas a ver. Como imaginar um escritor vestido de ninja, fazendo palhaçadas com aqueles molecotes do Casseta & Planeta? Ora, eles não são molecotes. O pessoal do Casseta & Planeta renovou o humor brasileiro”.

30 de novembro de 1996

"Um escritor senta à mesa"

"Um escritor senta à mesa — 'bon vivant' é personagem de romance recheado com receitas da Provence", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1996.

Resenha sobre o livro Gula, de John Lanchester, ed. Companhia das Letras, trad. Vera Pedrosa.

Gula, ou The debt to pleasure, romance de John Lanchester, poderia seguir pela deliciosa esteira das chamadas histórias-com-receita — como Festa de Babette e Como água para chocolate. Poderia, sim, não fosse a presença tantalizante, monológica e hipercrítica desta que é uma das mais sinistras e sedutoras criaturas já inventadas. Mr. Tarquin Winot, ou monsieur, como prefere, é o cavalheiro que assina o prefácio deste livro. Culto, inteligente, irónico e — a julgar pelo efeito salivante da leitura — irrepreensível cozinheiro, este inglês bon vivant de família rica decide, motivado por amigos e, segundo pensa, por algum tipo de altruísmo súbito, trazer a público o resultado de suas considerações culinário-existenciais sob a forma de uma espécie de diário de viagem gastronómico.

Winot conta em primeira pessoa detalhes de sua infância, traça a genealogia da batata, aponta os segredos do fermento, justifica a invulgaridade do caviar, desvela os sabores existentes na mente de Deus, cataloga venenos, fala de filosofia, arte e literatura e convence. Convence porque é lógico, imodesto e convicto; convence porque o texto, impecável — repita-se, impecável —, é um prato cheio de piadas eruditas, armadilhas e receitas; ingredientes que Lanchester, repórter, editor, crítico literário do London Review of Books e, sobretudo, premiado crítico de restaurantes do London Observer, soube misturar e muito bem servir. O prato é um saboroso roteiro de 220 páginas pela França, dividido em quatro partes. Cada parte é uma estação do ano; cada capítulo, um menu (o leitor pragmático deverá pegar da pena e anotar aqui mesmo, ao canto da página). Durante o Inverno, salada de queijo de cabra, ensopado de peixe e torta de limão. À Primavera, omeleta com cogumelos (alguns, fatais), carneiro assado com feijões verdes (o cordeiro é sem dúvida melhor, porém raríssimo) e pêssegos fatiados em vinho tinto (é de boa índole não servir pêssegos com sementes; estas contêm cianogénio; este, combinado com enzimas, produz cianureto). Verão, Outono, demais pratos e respectivas receitas, vide Gula.

Mas, afinal, que pretende Winot com este banquete? Não se deu ao trabalho de o escrever apenas para dizer que Auden misturava vermute e gim à hora do almoço; que vodka quer dizer aguinha; que o tempo dos incas era medido pelo tempo de estar uma batata perfeitamente cozida; que Joyce se referia ao queijo como o “cadáver do leite”, e que o leite coagulado significa sabedoria e maturidade alcançadas durante a vida, esta “doença incurável, com índice de mortalidade da ordem de cem por cento — forma segura de morte lenta”. Não.

À medida que se avança no menu e vai chegando o outono, o que antes tinha gosto de singular excentricidade e requinte ganha a consistência de uma megalomania espaçosa e ávida. Tarquin Winot controla o texto, o enredo e os personagens, trabalha com evasivas e esclarece apenas o que quer esclarecer para que tudo o mais permaneça encoberto. Cara a cara com a criatura de Lanchester, mesmo o leitor mais atento não vê nada, apenas jatos ofuscantes de narcisismo e egolatria. Recomenda-se o olhar de viés, oblíquo e dissimulado, este sim sagaz o bastante para entrever, nas histórias que Winot aos poucos vai deixando escapar — como os aperitivos e as entradas de um singular repasto —, a bizarra intimidade de sua presença com trágicos e inexplicáveis acontecimentos envolvendo a morte de pessoas próximas — explosões, suicídios, acidentes com trens e intoxicações.

É pelo rabo do olho também que se percebe a real espécie de sentimentos que Tarquin experimentava por seu falecido irmão Bartholomew — importante, fecundo e afamado pintor. Qualidades inconvenientes ao comportamento de um artista, que “deve ser avaliado pelo que não faz: o pintor, pelas telas que deixou abandonadas e não tentou fazer; o compositor, pela extensão e intensidade de seu silêncio”. Logo, quem terá feito arte, sem com isso ter cometido “o erro ingênuo, naturalmente encantador mas idiota, de transferir pensamentos para papel, tela ou piano”, será Winot, não Bartholomew — dedução que esvazia de importância a série de entrevistas que lhe faz Laura Tavistock, a bela jovem encarregada de escrever a biografia de seu irmão. Winot desloca os papéis e, por conta própria, passa a considerar-se, ele mesmo, o biografado.

Além de estranho, Winot está disfarçado, com peruca e bigode falso. Qual a razão do disfarce? Qual o objetivo de sua pequena viagem à Provença? Por que vai, aos bocados, dando a impressão de estar seguindo os passos de um jovem casal em lua-de-mel? Estas perguntas tornam-se particularmente incômodas à medida que corre a Primavera, lá pelos idos de Abril. “Foi nessa época do ano que, num desses dias, após haver comido um gigot com alho, acompanhado do clássico haricot, feito por minha bela mão (...), começou timidamente a luzir, em minha imaginação, o projeto artístico que se transformaria na obra de minha vida.” T. S. Eliot escreveu, em The waste land: “Abril é o mais cruel dos meses”. Tarquin Winot responderia: “Sim, Eliot, mas não para os cozinheiros”.

11 de outubro de 1996

"O fluxo caótico da memória"

"O fluxo caótico da memória — Romance crepuscular com parágrafo de 360 páginas reanima o passado com os vestígios do tempo presente", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1996.

Resenha sobre o livro Passado contínuo, de Yaakov Shabtai, ed. Imago.

Passado contínuo, de Yaakov Shabtai, não conta uma história, mas dezenas. Lembranças, diálogos, descrições, devaneios, monólogos e narrativas de sonhos são fragmentos a gravitar velozmente à volta do dia-a-dia de três amigos — César, Israel e Goldman —, rasgando em mil pedaços o ambiente doméstico que os envolve e escrevendo, em cada pedaço, uma história de vida.

Logo ao início, somos informados de que o pai de Goldman morre de doença e velhice e Goldman, passados os exatos nove meses que constituem o tempo do romance, decide, em primeiro de janeiro, matar-se. A partir daí, o texto constrói uma galáxia de histórias à ligeira. Quando retrocede, a narrativa é um sistema vibrante e complexo de ancestralidades e aconteceres — famílias, amigos, amantes, brigas, casamentos, crimes, jantares, almoços de sábado e enterros, muitos enterros. Em tempo presente, fora o suicídio de Goldman, o enredo é uma teia onde não acontece nada. As frases engatinham, frouxas e descontínuas, e os personagens hesitam e atolam-se — imobilizados numa espécie de caos existencial, onde o problema, o velho e irreparável problema, continua sendo a morte sem Deus.

Passado contínuo, ou o original Zichron dvarim — segundo a tradutora, Nancy Rozenchan, expressão para Memorando, a lembrança das coisas —, é um vertiginoso fluxo de memória. O texto só existe na medida em que lembra. Tecnicamente falando, o foco narrativo está na terceira pessoa, mas ela é muito mais que uma pessoa — tem ares de divindade e bem poderia ser a bela Mnemósina, mãe das nove Musas e deusa da Memória. Sua função é reanimar o passado e alimentá-lo com vestígios do tempo presente.

Da primeira à última linha deste romance de muitas frases, poucos períodos e um só parágrafo — um bloco maciço de 360 páginas —, Shabtai esgarça o cotidiano de várias famílias israelenses. Pertencem as famílias a uma camada social de elite intimamente ligada ao movimento sionista. Nos anos seguintes à formação do Estado, em 48, esta classe, antes compacta e poderosa, assiste sentada ao próprio esfacelamento político, religioso e moral.

O resultado da decadência chega ao núcleo familiar, senta-se à mesa de sábado e come, em silêncio total, conversas, afetos e saudades. César, Israel e Goldman, microcosmos da geração mais nova, são corpos estranhos em crise. Não se reconhecem como filhos, maridos, pais ou cidadãos. O mais que conseguem são esbarros; o mais que fazem não vale nada. César é devasso, insatisfeito e egoísta. Não tem o que dizer às suas várias mulheres, não sabe de onde mais tirar o prazer que não encontra em nenhuma delas e só se relaciona na medida em que pode saciar-se sem ônus. Israel, por sua vez, é como se não existisse. Mora de favor no estúdio de César, não tem opinião, não consegue dormir com a jovem Ella, é alheio, impotente e insípido. Goldman, entre o seu próprio enterro e, nove meses antes, o do pai, fez ginástica e apenas iniciou a tradução do Somnium, de Kepler. Quis morrer antes de continuar.

Yaakov Shabtai também teve a vida curta. Nasceu em 1934, foi criado em Tel Aviv e, durante o serviço militar, estabeleceu-se num kibbutz, onde começou a escrever. Passados dez anos, volta para Tel Aviv e dedica-se à literatura. É autor de novelas, peças e histórias para crianças. Sofre, aos 47, um ataque do coração e morre — sem saber latim e sem ter podido ler o Somnium no original.

Somnium significa sonho. A fábula, até hoje pouco conhecida, conta a história de um menino, Duracotus, que sonha alto. No sonho, realiza, com sua mãe, uma viagem à lua. Lá chegando, encontram seres errantes, abrasados sob o sol do longo dia lunar, à cata constante de um pouco de água e vivendo um tempo estranho, onde a existência é curta e o crescimento, rápido.

São muitas as aproximações possíveis entre a “ficção científica” seiscentista de Kepler e o romance de Shabtai. O crítico James S. Diamond, em artigo sobre o tema, identifica algumas. Uma delas, formal, diz respeito à superposição de planos narrativos. O Somnium começa com um sonho, que atravessa todo o texto. De repente, quando já nos desligamos do contexto inicial, a história volta ao início, para o exato momento em que Duracotus acorda, sobressaltado, de sua viagem à lua. Passado contínuo, quando relembra, carrega-nos para longe; quando retorna, abrupto, mostra-nos que não saímos do lugar. A outra função do Somnium está em oferecer, através do bizarro mundo lunar, a possibilidade de um espelho deformado. Goldman traduz o Somnium e conhece a vida na lua. Duracotus sonha e assiste à vida na Terra.

Ao fim e ao cabo — sonhando ou relembrando —, Kepler e Shabtai tentam dizer a mesma coisa: o tempo voa, a realidade é um fluxo nada razoável de aconteceres e a existência só não é totalmente absurda porque, a depender do lugar e do momento em que se esteja, há quase sempre Deus ou — na eventualidade de uma ausência — a Memória.

Somnium, Johannes Kepler (1571-1630)

O astrônomo e astrólogo Johannes Kepler (1571-1630) começou a escrever este livro entre 1609 e 1610. A publicação definitiva, tal como se conhece hoje, só aconteceu, póstuma, em 1634. Segundo James Diamond, o Somnium começa com uma “história narrada por um narrador em primeira pessoa que conta como pegou no sono”. Durante o sonho, teve a sensação de que estava lendo um livro. “O estranho livro falava das aventuras de viagem de um menino chamado Duracotus”. Desse ponto em diante, Duracotus toma a cena e conta “detalhes da sua última excursão: uma viagem imaginária à lua, ao lado de sua mãe”. A narrativa segue descrevendo a superfície lunar e seus habitantes. Lendo os trechos traduzidos por Goldman, protagonista do Passado contínuo, saberemos que os habitantes da lua “não têm moradia fixa: vagam em bandos durante um dia de horizonte a horizonte (...). O crescimento [dos seres lunares] é rápido e a vida é curta porque cada corpo cresce em dimensões gigantescas”.

22 de setembro de 1996