“Carta a
Gonçalves Dias (sobre o poema ‘A minha musa’)”, Revista Escrita n. 5, Revista
dos Alunos do Programa de Mestrado e Doutorado em Letras da PUC-Rio, 2003, v. 5, p.
1-11 (primeira página).
“Carta a
Gonçalves Dias (sobre o poema ‘A minha musa’)”, Revista Escrita n. 5, Revista
dos Alunos do Programa de Mestrado e Doutorado em Letras da PUC-Rio, 2003, v. 5, p.
1-11 (primeira página).
Caro Gonçalves,
Li seu poema A minha musa e, inspirado, agora lhe escrevo, para lhe dar alguma
satisfação. Vou chamar-lhe você apenas para adequar o tratamento ao costume de
meus dias e ao local de onde falo. Estivesse eu no exílio à época em que você
por lá andou e estaríamos agora a tratar-nos por tu ou mesmo vós —
provavelmente aos prantos, saudosos, apaixonados e poetas. Peço-lhe que não se
incomode com o óbvio de minhas palavras, mas tenho a dizer-lhe que o tempo
passou e você se tornou não apenas representante de um movimento e uma época
chamados romantismo, como também nome de rua, a rua Gonçalves Dias, no centro
da cidade do Rio de Janeiro. Seu trabalho constitui objeto de estudo e é este o
meu trabalho de hoje. Perdoe, pois, as ululâncias. Por outro lado, creio que
você aprenderá bastante sobre si mesmo com o conhecimento que se formou após
sua breve estada de 41 anos sobre o planeta, terminada estupidamente, acredito,
apesar de todo o romantismo envolvido no mero fato de morrer naufragado, que
para um romântico não deve ser pouca coisa — melhor que dormindo ou qualquer
outro passamento inglório. Vamos, então, caro Gonçalves, trabalhar.
Seu poema é parte de um grupo de
poemas com o nome de “Primeiros Cantos”. As razões para o título repousam em
seu desejo de que tais cantos sejam o início de uma série. “Dei o nome de
‘Primeiros Cantos’ às poesias que agora publico, porque espero que não serão as
últimas”, escreveu você em seu prefácio, imbuído, acredito, da mais sincera
superstição. O poema é composto de vinte estrofes não propriamente uniformes,
uma vez que você optou por menosprezar “regras de mera convenção” e utilizou os
ritmos da metrificação portuguesa apenas quando estes se mostraram úteis àquilo
que pretendia expressar. As vinte estrofes ficam divididas em três tipos: as
quatro primeiras, quadras ou quartetos; as dez seguintes, quintilhas ou
quintetos, com a décima se ligando à primeira das seis seguintes, novamente
quadras; e a última, que não passa de uma sextilha. “Que importância há
nisto?”, perguntará você, e eu não saberia responder senão alegando a
necessidade de reconhecer a importância e o lugar que tudo tem, inclusive estes
detalhes versificatórios — em outras palavras, eu não saberia responder, senão
com perguntas. Por que razão escolheu você estas formas e não outras? Por que
rimar alguns versos, e não outros? A falta de uniformidade já anunciada em seu
prefácio chegará ao paroxismo menos de cem anos depois. Falo do modernismo, mas
isto é outra história, e eu não saberia por onde começar a contá-la —
provavelmente começaria por você, com quem aqui continuo. Dê-me, pois, a mão, e
vamos trabalhar.
Estas poesias “não têm unidade de
pensamento entre si, porque foram compostas em épocas diversas — debaixo de céu
diverso — e sob a influência de impressões momentâneas”. Chego mesmo a
imaginá-lo ao pé do Douro ou do Tejo, com lágrimas nos olhos, a mirar o céu e
inflar-se de inspiração — esta ração estranha e indefinível que superalimentou
incontáveis gerações de poetas da sua linhagem, caracterizando sobremaneira o
seu método de trabalho, ou o seu “deixar-se arrebatar”. Posso mesmo imaginá-lo
do mesmo modo como imaginei a musa que você tão bem descreveu neste seu poema
que agora estudo: desejosa de solidão, amante do silêncio dos prados floridos e
da selva umbrosa — palavras suas, sexta estrofe, versos um e dois. Posso
arriscar também — e é desnecessário dizer que estou a interpretar — que o
retrato de sua musa em muitos momentos se confundiu com uma imagem que tenho
sua e de seu modo de trabalhar. Sua musa é sua inspiração, que não deixa de ser
o seu “eu lírico”, para ficarmos assim mais bonitos. Você escreveu: “Com a vida
isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena política
para ler em minha alma...”. Sua musa circula afastada do burburinho dos
banquetes e dos alpendres dos senhores, e está atenta ao “sussurro das águas,
os acentos / de profundo sentir”.
Minha musa
não é como ninfa
Que se eleva
das águas — gentil —
Co’um
sorriso nos lábios mimosos
Com
requebros, com ar senhoril.
Nesta estrofe, assim como nas quatro
seguintes, você vai traçar o retrato em negativo de sua musa, cantando o que
ela não é e atirando para longe aquela familiar imagem da antigüidade clássica
que nos veio de Homero: as Musas habitantes dos palácios e enturmadíssimas com
os deuses e os vates. Estou falando daquele grupinho de nove, as nove
divindades, filhas de Zeus, que presidiam às atividades desinteressadas do
espírito — faladeiras, badaladoras e mais vivas, bem mais vivas que a sua, que
não é como a ninfa. A ninfa — estou parecendo um dicionário — era a divindade
fabulosa dos rios, montes e bosques, e você a caracteriza sensualmente,
referindo os lábios, o sorriso e os quadris, representados pelos requebros.
Requebro pode ser qualquer gesto, você dirá. Modernamente, porém, caro
Gonçalves, o requebro se dá mais para baixo, em regiões glúteas. Não vá me
convencer de que não foi essa a sua intenção, ainda mais se levarmos em conta que
a própria palavra ninfa carrega às costas sentidos outros, oriundos da
disciplina da anatomia e utilizados na designação dos pequenos lábios da vulva,
ou boceta, que significa caixinha redonda, oval ou oblonga, ou ainda uma
determinada variedade da tangerineira, veja só. A rima desta quadra, assim como
das três seguintes, está no segundo e no quarto versos. Os dois últimos
iniciam-se da mesma maneira, contribuindo assim para uma leitura mais rítmica,
enfática e levemente redundante. No último verso acontece o fenômeno da cesura,
que divide a leitura em duas partes: “Com requebros, com ar senhoril”, chamando
a atenção do leitor para os requebros, ou seja, os gestos, ou seja, os quadris.
Nem lhe pousa
nas faces redondas
Dos fagueiros
anelos a cor;
Nesta terra não tem uma esp’rança,
Nesta terra não tem um amor.
Estou começando a convencer-me,
Gonçalves, da morbidez deste poema. Ainda não havia falado neste assunto com
receio de me estar precipitando, mas a morte ronda estes versos, se não é ela a
protagonista deste retrato em branco e preto. Sua musa é branca como é branca a
morte, e não lhe pousa nas faces redondas a cor. Esta estrofe diz do que não
acontece à sua musa: não lhe acontece o rubor. A terra de que você fala nos
dois últimos versos é uma terra desolada. Isto um dia vai ser o título de um
belo poema — ou melhor, já foi. Os dois últimos versos começam iguais, e seguem
iguais até quase o final, com a incorporação da primeira letra de “amor”,
casando assim “uma esp’rança” e “um amor”. A repetição produz um
efeito obsedante que fortalece a desolação desta sua terra. Há nos dois
primeiros versos um cavalgamento, ou seja, “processo poético de pôr no verso
seguinte uma ou mais palavras que completam o sentido do verso anterior”,
segundo palavras dicionárias. Refiro-me à cor dos anelos fagueiros a pousar, ou
melhor, a não pousar, nas faces redondas de sua musa. A palavra usada para
completar o sentido que permaneceu aberto no primeiro verso é chamada de parte excedente. Neste caso, o excedente é a palavra “cor”. Estas
informações eu tirei de um livrinho muito bom que depois lhe passo, chamado Versificação portuguesa, de um sujeito
chamado Manuel Said Ali, que morreu em 1953 e, portanto, você já deve conhecer.
Como fada de
meigos encantos,
Não habita um
palácio encantado,
Quer
em meio de matas sombrias,
Quer
à beira do mar levantado.
Uma bela imagem, embora já gasta
aqui neste tempo de onde falo: a imagem do castelo ao pé de uma escarpa, socado
por ondas gigantes, ou então escondido na mata. Isto se tornou imagem
recorrente de desenhos para crianças, lugar comum do terror em cores. Os dois
últimos versos abrigam idéias de altitude e profundidade, vida e morte. Estamos
a falar disso, e a morte é ambas as coisas — seu estado de matéria putrefata no
subsolo e seu estado de espírito sorridente nas alturas —, materialismo e
metafísica. Até mesmo a filosofia, quando não sabe o que fazer com este velho
dilema, pode dar-se ao luxo de ser romântica, como nós ainda o somos,
profundamente. No interior da mata sombria e à beira do mar levantado são
imagens femininas e masculinas. Esta estrofe diz do lugar onde sua musa não
habita. Novamente a repetição do início nos dois últimos versos, agora menor,
porém igualmente enumerativa, em “Quer”, seguido, nas duas linhas, de uma idéia
de lugar: “em meio de” e “à beira do”. Há uma certa redundância em “meigos
encantos” e “palácio encantado” — é muito encanto para tão pouco espaço. Do
mesmo modo como falei redundância, poderia, se fosse minha intenção o elogio,
falar aliteração. Interpretações, intenções, gostos e algum rigor — assim
caminha a crítica. Trata-se, por outro lado, de uma das estrofes mais ritmadas.
O “m” de “meigos” se encontra praticamente na mesma posição do “m” de “matas”
(ao que se segue o “m” de “em meio”) e de “mar”. Mais aliterações.
Não tem ela
uma senda florida,
De perfumes,
de flores bem cheia,
Onde
vague com passos incertos,
Quando
o céu de luzeiros se arreia.
O último verso é o único responsável
por ser esta uma bela estrofe. Luzeiro, no singular, tem um sentido mais
literal que sua versão plural, que significa olhos. Luzeiro é tudo aquilo que
emite luz, mas luzeiros são olhos no sentido poético — olhos que por si não
emitem luz alguma, embora a reflitam, e aqui o verso ganha mais sentidos:
podemos imaginar os olhos de sua musa, olhos que refletem a luz que vem dos
olhos do céu quando o céu se arreia, ou seja, se enfeita. Esta estrofe fala
daquilo que sua musa não tem: uma senda florida, cheia de perfumes e de flores.
Há no segundo verso uma cesura: “De perfumes, de flores bem cheia”. Os dois
últimos versos não comportam inícios iguais, como as estrofes anteriores, mas
mesmo assim conseguem o efeito de ênfase e repetição, já que começam com os
advérbios “onde” e “quando”.
Não é como a
de Horácio a minha Musa;
Nos soberbos
alpendres dos Senhores
Não
é que ela reside;
Ao banquete
do grande em lauta mesa,
Onde gira o
falerno em taças d’oiro,
Não
é que ela preside.
Esta
é a última estrofe em que se diz o que sua musa não é — neste caso, o que não
faz: não reside nos alpendres dos senhores e não preside aos banquetes. Há aqui
uma homenagem ao seu poeta latino predileto, não apenas graças à menção direta
ao velho Horácio, mas também à sua bebida preferida — o falerno, cujo nome vem
de uma região da Itália também chamada Falerno. “É notório como Horácio bebia
falerno”, já escreveu Ramalho Ortigão, espalhando, indiscreto, a notícia.
Trata-se de uma sextilha que segue o esquema nna nna, onde “n” representa a linha não-rimante, e “a” a rima nos
versos três e seis. Eu não vou mais falar de rimas. Estou um chato.
Ela ama a
solidão, ama o silêncio.
Ama o prado
florido, a selva umbrosa
E da rola o carpir.
Ela ama a
viração da tarde amena,
O sussurro
das águas, os acentos
De profundo sentir.
Sua musa é pouco festeira, como você
já havia indicado na estrofe anterior, e gosta de estar próxima aos elementos
naturais. Quando digo “sua musa”, estou, de fato, me referindo a você, caro
Gonçalves; a você e ao seu “eu lírico”, para usar e abusar mais uma vez deste
terno termo. Sua musa é a musa do poeta, entenda-se, e o poeta é você, você
mesmo, que morreu afogado, não em lágrimas, mas no mar salgado. Rimei. Temos
aqui um quadro da Mãe Natureza, semelhante àquilo que você fez nas estrofes
três e quatro. Repare na repetição da idéia entre: “Quer em meio de matas
sombrias” (3ª estrofe) e “a selva umbrosa” (6ª estrofe); “Não tem ela uma senda
florida, / De perfumes, de flores bem cheia” (4ª estrofe) e “Ama o prado
florido” (6ª estrofe). Tudo isto para dizer que está claro o desejo de sua musa
por aquilo que ela não pode, ou não deve, possuir. Ela não tem uma senda
florida cheia de perfumes e de flores e, no entanto, ama o prado florido, a
selva úmida e escura e os lamentos da rolinha. Mas nem tudo são flores. Sua
musa é melancólica e seu comportamento coincide com o dos novos poetas,
chamemo-los assim, em oposição aos velhos poetas da antigüidade, representantes
das tradições de sua sociedade — o vate, o que faz vaticínios; e o aedo, o que
canta a história.
D’Anacreonte
o gênio prazenteiro,
Que, de
flores cingia a fronte calva
Em brilhante festim,
Tomando
inspirações à doce amada,
Que leda
lh’enflorava a ebúrnea lira;
De que me serve a mim?
Aparece, enfim, a primeira pessoa
deste poema. O possessivo “minha musa” funciona certamente como um indicativo
da primeira pessoa, mas direcionado a uma terceira, a quem descreve. Temos
desta vez uma pergunta, e uma pergunta típica do subjetivismo que agora quer
manifestar-se. “De que me serve a mim?”, pergunta o último verso. O mundo só
serve se serve a mim; só vale a pena se vale para mim. Caso contrário, morra o
mundo ou morrerei eu, o que pode dar no mesmo — e dará. Vocês, românticos, são
o oito e o oito mil. Os elementos desta estrofe sugerem festa: o poeta grego
Anacreonte, o prazer de seu gênio, as flores sobre sua careca, o bate-coxa, sua
lira de marfim, a doce amada inspiradora — tudo isso, para que serve, se para
mim, no caso você, não serve? Vocês dois são poetas, quem haverá de negar?, mas
de gênios diversos. O que é bom para Anacreonte não será bom para Gonçalves.
Canções que a
turba nutre, inspira, exalta
Nas cordas
magoadas me não pousam
Da lira de marfim.
Correm meus
dias, lacrimosos, tristes,
Como a noite
que estende as negras asas
Por céu negro e sem fim.
Não pousam em mim, vindas das cordas
magoadas da lira de marfim, as canções que a turba nutre, inspira e exalta,
dizem seus versos, agora desenrolados destas esdrúxulas inversões. Turba, neste
caso, pode seguir seu terceiro significado: vozes que cantam em coro. Os
primeiros três versos desta estrofe, temo que não ficaram bem, tamanha foi a
ginástica inversionista que você utilizou. Não chega a ser uma sínquise, que é
uma inversão exagerada dos termos da frase — aprendi com o professor Manuel —,
mas, convenhamos, estes não são seus melhores versos... E já que estamos a
falar em melhores versos, permita-me um parêntese que vai deleitá-lo. O “Hino
nacional” você não conhece, embora, sem o saber, o tenha inspirado. O autor, o
sr. Osório Duque Estrada, venceu em 1909 o concurso para a escolha da letra, e
há um verso que foi chupado da sua “Canção do exílio” (se não foram esses os
seus melhores versos, de certo figuram como os mais conhecidos). “Nosso céu tem
mais estrelas, / Nossas várzeas têm mais flores, / Nossas flores têm mais vida,
/ Nossa vida mais amores.” E agora o hino do Osório: “Teus risonhos, lindos /
campos, têm mais flores; / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida no teu
seio, / mais amores”. Fecham-se os parênteses. Onde estávamos? Afora o
possessivo “minha”, do título do poema, que é também o início, e a pergunta que
termina a estrofe anterior, você não voltou a mostrar-se até chegarmos a esta
estrofe. Até então, apenas a sua musa e o que ela não era ou não fazia. Agora
está o lamuriante poeta a falar de seus dias lacrimosos e tristes — seus dias,
que são como as noites, assim como a vida, esta vida, será como a morte.
É triste a minha Musa, como é triste
O sincero
verter d’amargo pranto
D’órfã singela;
É triste como o som que a brisa espalha,
Que cicia nas
folhas do arvoredo
Por noite bela.
Sim, sua musa é órfã, já que não é
filha de uma tradição de musas que sabemos serem diferentes da sua. Musas que
andam juntas, em bandos de nove, ao contrário da sua, que, sozinha, erra pelos
campos... E as recorrências à natureza prosseguem; a natureza serve para o que
se quiser; está à mão do poeta, porque a terra é boa e em plantando nela tudo
dá. Pode ser a tristeza ou a alegria, bastando para a idéia de melancolia
escurecer os campos e ressecar as árvores, ou, em caso oposto, colorir as
pétalas das flores e azulejar o céu. A noite da estrofe anterior tinha asas
negras e seu céu era negro e sem fim; a noite desta estrofe é apenas bela, e
sua tristeza, serena. Sua musa, mais uma vez, vai chorar de braços dados com a
natureza, porque seu choro será como o som da brisa chacoalhando as árvores. E
se sua alma, Gonçalves, está negra e sombria é porque a noite certamente não é
de lua.
É triste como
o som que o sino
ao longe
Vai perder na
extensão d’ameno prado
Da tarde ao cair,
Quando nasce
o silêncio envolto em trevas,
Quando os
astros derramam sobre a terra
Merencório
luzir.
Na
estrofe anterior a palavra triste surge três vezes, reforçando o espelhamento
entre a tristeza da musa, a do poeta e a da própria natureza. “É Triste como” e
“como é triste” são as expressões utilizadas. Esta estrofe de agora é a
continuação das analogias, e o som da tristeza soa como o de um sino se
perdendo ao longo e ao longe de um campo aberto num cair de tarde. Gostou? Mais
melancolia, impossível. A aliteração entre “som”, “sino” e “silêncio” fica
registrada. O merencório luzir é a melancólica pouca luz do entardecer, o
crepúsculo, o momento de pior luminosidade, a chamada “hora má”.
Ela então,
sem destino, erra por vales,
Erra por
altos montes, onde a enxada
Fundo e fundo cavou;
E pára;
perto, jovial pastora
Cantando
passa — e ela cisma ainda
Depois que
esta passou.
Além — da
choça humilde s’ergue o fumo
Que em
risonha espiral se eleva às nuvens
Da noite entre os vapores;
Muge solto o
rebanho; e lento o passo,
Cantando em
voz sonora, porém baixa,
Vêm andando os pastores.
Há
aqui uma bela alusão crítica aos movimentos passados, no seu caso a poesia
árcade. Representam estas duas estrofes a vida pastoral, e todo o poema é a
constatação de um movimento de diferença entre um tipo de fazer poético e outro
— a vida no campo, a natureza amiga e serena, a musa de Horácio, o próprio
Horácio e seu famoso bordão fugere urbem
(fugir da cidade). Agora damos com a pastora que passa, jovial, só faltando
estar aos pulinhos, encharcada de serenidade bucólica. Passa cantando ao pé de
sua musa, errática e cismenta. Como são diversas estas duas criaturas: uma,
preocupada, desconfiada, solitária e triste; a outra, inteira unida ao campo,
nunca sozinha, pois também unida à fauna caprina. O romantismo, aqui presente
graças a esta sua musa diferente das outras, mostra-se como a possibilidade de
auto-conhecimento através do cismamento de si. Se a musa erra sem destino, é
porque está à procura de si mesma, em atitude radicalmente diversa do
alheamento pastoril. O dia-a-dia no campo se encontra condensado na segunda
estrofe. É o mesmo campo que os poetas árcades cantavam, porém nele não
moravam, pois eram boêmios urbanóides flagrados em pleno fingimento poético.
Tudo é tranqüilo e até a fumaça da chaminé da humilde casa chega ao cúmulo de
ser risonha. Vem a tarde e vêm também, cantarolantes e famintos, os homens —
anunciados pelo mugir do rebanho. Tudo é alheamento. A natureza, para eles, é
cenário; para você, um espelho d’alma tortuosa.
Outras vezes
também, no cemitério,
Incerta volve
o passo, soletrando
Recordações da vida;
Roça o negro
cipreste, calca o musgo,
Que o tempo
fez brotar por entre as fendas
Da pedra carcomida.
Sua
musa continua seu passeio e agora dá no cemitério. Retornam mais nítidas as
referências à morte. Ela não tem nada melhor para fazer, senão recordar a vida,
que para ela é algo que já não mais é, mas foi, e é por isso que recorda. E
suas recordações são como o musgo que, não obstante o tempo, e talvez graças a
ele, brota por entre as fendas da pedra carcomida, regado a torrentes de
lágrimas. São as fendas a memória; é a pedra o esquecimento e o correr do
tempo. Há nesta estrofe dois tempos, o da vida, que é crescimento e musgo e
também o negro cipreste; o da morte, que é pedra imóvel e fendida — o tempo
fora do tempo.
Então corre o
meu pranto muito e muito
Sobre as
úmidas cordas da minha Harpa,
Que não ressoam;
Não choro os
mortos, não; choro os meus dias
Tão sentidos,
tão longos, tão amargos,
Que em vão se escoam.
Nesse pobre
cemitério
Quem já me dera um lugar!
Esta vida mal
vivida
Quem já me dera acabar!
Volta
o poeta a falar de si, volta o arrebatamento. Os elementos desta estrofe são
uma harpa cujas cordas não ressoam, um pranto que jorra sem parar e uma
insuportável autocomiseração. Não são os mortos, diz você, mas a morte que há
em sua vida. Isto me lembra um poema e um poeta: “Toada de Portalegre”, do
português José Régio. Veja-se este trecho: “O amor, a amizade e quantos sonhos
de cristal sonhara, bens deste mundo que o mundo me levara, de tal maneira me
tinham, ao fugir-me, deixado só, nulo, atônito, a mim, que tanto esperara ser
fiel e forte e firme, que não era mais que morte a vida que então vivia,
auto-cadáver!” (não pus as barrinhas para separar os versos porque estou aqui
escrevendo de memória). A quadra que se segue à sextilha, e a ela ligada, não
passa do bom e velho escapismo romântico. É uma quadra exclamativa, redundante
e para mim sem grande valor.
Tenho inveja
ao pegureiro,
Da pastora invejo a vida,
Invejo o sono
dos mortos
Sob a laje carcomida.
Se qual pegão
tormentoso,
O sopro da
desventura
Vai bater
potente à porta
De sumida sepultura:
Uma voz não
lhe responde,
Não lhe responde um gemido,
Não lhe
responde uma prece,
Um ai — do peito sentido.
Já não têm
voz com que falem,
Já não têm que padecer;
No passar da
vida à morte
Foi seu extremo sofrer.
Que
lh’importa a desventura?
Ela passou, qual gemido
Da brisa em
meio da mata
De verde alecrim florido.
Esta inveja é, de certo, irônica.
Os alvos são o pegureiro e a pastora, ambos a viver de rebanhos, ambos
alienados, como o são os mortos, alienados em seu interminável sono. Da pastora
você invejará a vida, e dos mortos a morte. Somente sob estes papéis, você,
poeta, estará a salvo de si mesmo e de seus cismamentos. Mais uma vez a laje
carcomida é sua obsessão. É bom estar morto, pois já não será preciso responder
ao sopro da desventura, que é forte como vento de tormenta e é potente quando
bate à porta em busca de uma resposta. Mas se bate à porta de uma sepultura é a
voz da sepultura que lhe responde, e a voz da sepultura não é gemido, não é
prece e não é grito — que esta é a voz dos vivos. A voz da sepultura pode ser o
vento. Aos vivos é que se dirigem estas estrofes, para mostrar-lhes que o
sofrimento não é estar morto, mas morrer. “No passar da vida à morte / Foi seu
extremo sofrer.” E a desventura, se para os vivos é um pegão tormentoso que
bate potente à porta das sepulturas, para os mortos não passa de gemido da brisa
que passa pela mata verde.
Quem me dera
ser como eles!
Quem me dera
descansar!
Nesse pobre
cemitério
Quem me dera
o meu lugar,
E co’os sons
das Harpas d’anjos
Da minha
Harpa os sons casar!
É
chegada a hora do juízo final deste poema, a morte do poeta, a provável
comunhão com a musa — comunhão que, em verdade, sempre existiu, não fossem
vocês dois, você e sua musa, a mesma coisa. Chamo-o de coisa, não se aborreça,
na falta de palavra melhor. Você, sendo sua musa, é sua própria inspiração e
fonte de si mesmo. A reunião, no céu, da harpa do poeta com as outras harpas é
o encontro poético por excelência. Não seria mau terminar também
exclamativamente, e é por isso, caro Gonçalves, que eu assim termino, como você
e sua turma terminariam, ambíguo, contraditório e em tormentoso dilema —
inteiramente absurdo: que viva a morte!
Seu,
Juva
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