6. “Um estranho no sofá” (“Tratado
geral dos pais ciumentos — ou a ‘arte de
amarrar genros’"), Revista Lilica and Tigor,
São Paulo, set. 2011 (data aproximada).
Ser pai de duas miúdas bonitas (a minha opinião é isenta, não me
canso de repetir isto)… ser pai de duas miúdas lindíssimas, como eu dizia, tem
os seus percalços. Mais cedo ou mais tarde o tema dos namorados ou dos arremedos
de namorado acaba vindo à baila, e um pai, que é homem e conhece os homens,
deve saber como se portar para não passar por bobo e ciumento. A curiosidade
acerca do tema do namoro e do amor, e, na boleia disto (ou seja, na carona
disto), acerca do tema dos beijos na boca, é um impulso que funciona em ondas,
e os discursos das miúdas muitas vezes caminham no sentido contrário ao das
ações.
A minha filha Alice, que tem nove anos e é o máximo (eu já disse
isso?), não pode ouvir falar em beijo na boca, que vira o rosto e faz cara de
nojo, como se um beijo na boca fosse a coisa mais inconcebível para uma criatura
racional. Ao mesmo tempo, espicha o pescoço, mal conseguindo disfarçar a
curiosidade, quando me vê ao telefone a trocar torpedinhos com a minha
namorada, e quer porque quer saber o código de acesso do meu telemóvel (celular),
e quer porque quer saber o teor daquilo que eu tão marotamente escrevo no
telemóvel, fazendo cara de levado-da-breca.
A Clarinha, que tem quatro anos e é irresistível (isso eu ainda
não havia dito), diz a todos, mesmo que não perguntem (e falava o meu avô que não
existem perguntas indiscretas; existem é respostas indiscretas)… a Clarinha
anuncia aos sete cantos do mundo que tem dois namorados, um mais novo do que
ela (“… para eu ensinar a ele coisas, papá”), e outros mais velho do que ela (“…
para ele me ensinar coisas, papá”); diz que já beijou na boca várias vezes, manifesta
sempre a vontade de me dar a mim um beijo na boca; avisa que há pelo menos três
colegas da escola, da mesma idade, que querem ser o namorado dela; e diz que
eu, uma vez que sou brasileiro mas moro em Portugal, e portanto tenho amigos
dois lados do oceano, deveria ter, no mínimo, duas namoradas: uma aqui e outra
lá, diz ela (“… é bem melhor assim, papá; assim não ficas com saudades de
namorar…”).
Provavelmente, daqui a poucos anos, eu me verei na situação de
enfrentar estas duas miúdas novamente numa posição inversa: a Clara com esgares
de face diante de um beijo na boca flagrado numa televisão ou numa página de
revista, e a Alice, bem mais maliciosa daqui a alguns anos, a disfarçar melhor,
bem melhor, o seu interesse, mais real e mais cheio de perspectivas, diante da
possibilidade de ela mesma dar, nalgum dia, o seu primeiro beijo na boca. Não vou
agir como um amigo um dia me segredou, talvez a citar alguém e referindo-se aos
pretendentes da sua filha: “Divido-os em dois, meu caro Juva”, disse ele. “Aqueles
que eu detesto e aqueles que eu desprezo.” Não. Tentarei ser bem mais civilizado:
vou amarrá-los numa cadeira e pedir que jurem, de pés juntos (e isso vai ser
fácil, porque os pés estarão amarrados a um pé da cadeira)… vou pedir que jurem
que jamais se deixarão amarrar em cadeiras por um pai-de-princesas ciumento e
bobo.
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