“A grande família de Pennac”, NO — Notícia e Opinião, 3 de maio de 2001.
Resenha sobre o livro Frutos da paixão, de Daniel Pennac.
Resenha sobre o livro Frutos da paixão, de Daniel Pennac
Em seu livrinho Como um romance (Comme un roman), Daniel Pennac listou os dez direitos inalienáveis do leitor. Além do primeiríssimo e crucial “direito de não ler”, dois outros vêm agora ao caso: o “direito de amar os ‘heróis’ dos romances” e o “direito de não falar do que se leu”. A necessidade de se escrever esta resenha nos desautoriza o exercício desse último. Quanto ao amor pelos heróis, ele nos estimula em sentido inverso: é justamente porque os amamos que ganhamos o direito líquido e certo de não calar a respeito deles e da história que vivem.
Os heróis deste novo livro de Daniel Pennac, Frutos da paixão, são muito mais adoráveis do que heróicos. Seu mundo é o fabuloso universo ficcional de Belleville, bairro parisiense onde crescem e se multiplicam, além de árabes, judeus e marroquinos — todos “humildes e multiculturais” —, os membros da invulgar família Malaussène, também chamada a “tribo Malaussène”. Pennac não fez nenhuma concessão ao que seria moralmente conveniente ou politicamente correto quando montou a sua exótica galeria de personagens. Em grupo ou tomando-se à parte cada membro da tribo, os Malaussène são uma alegoria da diversidade humana, ou em palavras mais meditadas, um elogio literário à tolerância.
Suas aventuras deram certo e ganharam o status de uma saga que já dura cinco livros: O paraíso dos ogros, La fée carabine, A pequena vendedora de prosa e Senhor Malaussène. As histórias de cada um, embora praticamente independentes umas das outras, fazem circular as mesmas criaturas: Benjamim Malaussène, o narrador-protagonista, irmão da bela Teresa, virgem, solteira e infalível vidente; irmãos ambos de Luna, Clara, Pequeno e Jeremias; Julios, um cão epilético; o tio Teo, homossexual apaixonado pela idéia de ter, com seu amor Hervé, nada menos que um filho; e, por fim, encimando a estrutura da tribo e responsável pela explosão demográfica que caracteriza toda a família, a ninfômana mãe dos seis, nunca encontrada porque sempre perdida nos braços e pernas de um novo amante — o da vez. A estes devem ser juntados os netos da mãe, bebês nascidos das mais diversas e criativas combinações amorosas e cujos nomes, não menos criativos, vão surgindo da irreverente imaginação do irmão Jeremias, responsável pelos batismos: as crianças Verdun, É Um Anjo, Senhor Malaussène e Maracujá (fruit de la passion). O título do livro é uma referência a estes netos e também a todos os filhos de prostitutas de Belleville: crianças sem lar e família, reunidas, aos cuidados da tribo Malaussène, na creche Frutos da paixão.
Mas o livro não se atém à história deste “jardim-de-infância (...) para todos os filhos e filhas de putas do bairro”, mas a uma outra: o casamento da frágil, surpreendente e sedutora Teresa com um tal Marie-Colbert de Roberval, conselheiro do Tribunal de Contas e descendente nebuloso de uma não menos nebulosa família de condes e membros de governo, desde 1660, durante o reinado de Luís XIV, a enriquecer mais mafiosamente do que recomendaria a decência. O centro nervoso da narrativa fica a cargo de Benjamim, que não aceita a idéia de que sua apaixonante e apaixonável irmã está diferente, sim, e noiva. “Teresa, o que é que você tem? Ela me disse: — Estou amando. Tentei uma saída: — Amando o quê? Mas ela confirmou: — Estou amando um homem.”
A partir de então, os ciúmes mal dissimulados e o neurótico pressentimento de que aquele casório só traria desgraças a toda a tribo fazem de Benjamim o mais intransigente inimigo de Marie-Colbert, cujos propósitos matrimoniais são verdadeiramente outros. Exímia em todas as modalidades da adivinhação, “rabdomancia, tarô, bola de cristal, quiromancia, imposição das mãos, I Ching, borra de café, leitura de areia, búzios, runas, passes” e muito mais, Teresa, argumenta seu irmão, será friamente explorada pelo almofadinha do Colbert, que só terá olhos para a própria mulher na exata medida em que sua vidência o ajudar em suas inconfessáveis ambições políticas.
Esta vidência, no entanto, que lhe veio quando lhe vieram as regras e guarda origem na estranha circunstância de Teresa ter estado aos berros ainda na barriga da sua ninfomaníaca mãe, tem dia e hora para desaparecer: o dia e a hora de sua noite de núpcias. Lembre-se do Memorial do convento, de José Saramago: Blimunda só conseguia enxergar o interior dos outros se estivesse em jejum matutino. A irmã de Benjamim terá intactos seus poderes sobre o ontem e o amanhã, sim, mas se mantiver intacta a sua virgindade.
Esta é a configuração inicial da trama, que parte daí e se complica, oscilando entre uma quase farsa, com personagens quase burlescos, uma ação rápida e muitos diálogos, e um quase romance policial, com direito a assassinatos, sessões de tortura, incêndios criminosos e algum suspense. Mesmo estando o foco narrativo nas mãos do neurótico Benjamim, e, portanto, a versão da história ser a sua, com as suas descrições e os seus juízos de valor, o romance de Pennac permanece longe de qualquer traço de intimismo. Também não se trata do que se convencionou chamar “romance de idéias”. “Sou um romancista”, disse em entrevista a Label France, “ou seja, quase o contrário de um intelectual”. E cita Céline: “Em matéria de romance, nada é mais vulgar que uma idéia” — uma idéia desacompanhada de um fato humano, pode-se acrescentar. E todos os romances são um fato humano. Pennac, professor em uma escola de Paris, sabe da potência formadora e transformadora das histórias que se lêem nos livros e sabe que é pela via da arte que melhor se transmitem e assimilam idéias.
E suas idéias estão lá, acompanhadas de uma boa história e bons personagens e realizando um duplo trabalho: de crítica da linguagem e crítica social. A narrativa constrói-se num acerto de contas com a própria língua falada e escrita. Usa e abusa dos chistes, revitaliza frases feitas, dispõe os diálogos sob a forma de um texto para teatro, assinalando os silêncios com reticências e desse modo aumentando a sua força dramática, monta neologismos e contesta, enfim, a cada frase, a idéia de que uma língua deve algum dia estabilizar-se em suas normas e seus estatutos. E, com essa mesma língua, ele aponta para o estado de coisas em sua sociedade. Quando dá a palavra aos Malaussène e a todo o universo “marginal” de Belleville, deixando a eles mesmos a responsabilidade de contar a sua própria história, Pennac torna menos opaca uma realidade normalmente escamoteada por todo o tipo de preconceito e aponta para uma alternativa social: a solidariedade da “tribo” no lugar do individualismo e do amor ao dinheiro, a qualquer preço.
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