“Um Primo Levi surreal — Em livro de contos, autor italiano troca
memória do Holocausto pelo sonho”, Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 28 de junho de 2003.
Resenha sobre o livro O
último Natal de guerra, de Primo Levi, ed. Berlendis e Vertecchia.
Imagine-se um lugar amplo, nevoso e frio, cheio de humanos e grandes construções planas. Uns humanos consideram-se mais humanos e bem feitos que outros, e por isso mantêm os outros humanos — que não são considerados tão humanos assim, embora sejam muitos — presos ou a trabalhar de modo inumano. Os que se consideram mais humanos e mais evoluídos, em menor número, dão àqueles que consideram pouco evoluídos e imperfeitos pouca comida e água, ao passo que os muito humanos comem bem e até sorriem, empanturrados. Periodicamente, aqueles que se consideram mais humanos realizam grandes operações com o grupo dos menos humanos — estes bem mais magros e mais doentes: os mais humanos e evoluídos queimam os menos humanos em grande fornos ou os enfiam às centenas em amplos galpões que cheiram a gás, de onde saem carregados em potentes empilhadeiras e depois são atirados já sem vida em amplos buracos comuns. Quando isso acontece, os que se consideram mais humanos e mais bonitos limpam as mãos, sorriem e voltam ao trabalho, convencidos de que se fez então o bem. Surrealismo, literatura fantástica, ficção científica pós-nuclear? Não, apenas a parte mais conhecida da literatura de Primo Levi: o memorialismo do Holocausto, descrito aqui com o toque da estranheza, como se o descrevesse um extraterrestre à sua gente.
Esse Primo Levi conhecemos muito bem: o químico judeu-italiano nascido em Turim em 1919 e falecido voluntariamente em 1987, o prisioneiro nº 174.517, o escritor responsável pela primeira pessoa narrativa de É isto um homem?, A trégua, Os afogados e os sobreviventes — livros testemunhais, necessários e, ainda assim, elegantes, filosóficos, literários e muito pouco autocomiserativos; livros que procuraram dar conta daquilo que Levi chamou a sua “memória patológica” particular. Por que patológica? Porque obriga à evocação, sob pena e risco de levar à loucura aquele que de algum modo tenta represá-la. Levi compara-se a um personagem de Borges, Irineo Fuentes, “el memorioso”, de cuja memória nada escapa, nem mesmo uma única pedrinha diante dos olhos, ou cada folha de cada árvore de cada caminho percorrido. Irineo “tinha mais lembranças sozinho do que quanto poderiam ter todos os homens que viveram desde que o mundo existe”, cita Levi, justificando uma parte — a mais conhecida, a mais bela — de sua literatura.
Um canguru é convidado para um jantar chique, atrapalha-se com as escadas e os talheres e apaixona-se pelo carinho que lhe faz uma dona entristecida. Dois seres bidimensionais, num país bidimensional, encontram-se, enamoram-se, fundem-se numa só figura, conseguindo, num relance, chegar à visão de um mundo ricamente tridimensional, e afastam-se, assustados e sabedores de sua inépcia para a profundidade. Um trem, enguiçado numa planície deserta, começa a ser metodicamente despedaçado por uma gente esquisita, e a história não acaba nada bem. Um pacato cidadão é entrevistado por uma goma alienígena, que lhe pergunta com quantos anos começa a roupa a desenvolver-se e se por acaso nos lavamos para não morrer. São também entrevistadas, dessa vez por um jornalista bem-intencionado, uma aranha, uma toupeira, uma girafa, uma gaivota, uma formiga e uma bactéria intestinal. Um fabricante de espelhos finalmente inventa o Spemet, o espelho metafísico — colado à testa de alguém, mostra como esse alguém nos vê. Um animador de TV recebe uma carta interplanetária implausível. Um sujeito, convencido de que “um minuto transcorrido diante de um semáforo é aproximadamente oito vezes mais longo que um minuto transcorrido em uma conversa com um amigo; 22 vezes se o amigo for do sexo oposto”, registra enfim a patente do medidor de tempo subjetivo. Surrealismo, literatura fantástica, realismo mágico?
É esta a outra literatura do outro Primo Levi: O último natal de guerra — 22º livro da série “Letras italianas”, da editora Berlendis & Vertecchia, a agrupar e apresentar escritores, mais e menos conhecidos, a partir de suas regiões italianas de origem. O último natal... é mais que uma bem cuidada coletânea de narrativas breves, quase contos, e alguns relatos autobiográficos, ainda produtos da necessária memória patológica de Levi. Os textos, variados e muitos, mais de vinte, escritos ao longo de dez anos, de 1977 a 87, não desenvolvem qualquer tipo de experimentalismo com a linguagem. São, antes disso, sóbrios e lineares. Sua radicalidade vem das escolhas temáticas e das propostas descritivas. Um dos textos, “O passa-muros”, conta a história de Mêmnon, o estudioso defensor da idéia de que a última barreira da matéria não era, como se pensava, a água, mas as derradeiras bolinhas, os átomos. Herege, é preso e trancafiado. O que faz? Emagrece ao ponto do etéreo e inicia a tarefa de sua vida: atravessar o muro que o encarcera há décadas. A narrativa consegue dar conta, e belamente, desta descrição, implausível se não fosse conduzida da maneira mais delicada — e tudo levado a cabo, repita-se, dentro da mais incontestável ortodoxia formal. Levi é clássico; diabolicamente clássico.
O último natal de guerra tem, no entanto, uma característica definidora e definitiva: a sensação — ativada em diversos momentos e sob vários pretextos e formas — do estranho. Levi narra o esquisito de forma natural, para, ao fim e ao cabo, exibir o natural na sua forma mais esquisita. O resultado não poderia ser mais rico: todos os textos esboçam, com o exercício do estranhamento e cada um à sua maneira, o que poderia constituir um olhar estrangeiro, às vezes alienígena, sobre nossos hábitos de pensamento e de consumo, que se transformam então em novos objetos — viçosos, frescos e bem mais permeáveis a um delicado e implacável exercício de crítica.
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