"Prosa actual: alguns caminhos”, JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6 a 19 de Maio de 2009, Lisboa, Portugal, p. 12-13.
Pode-se falar, hoje, de uma literatura brasileira? Ou de uma literatura brasileira? Poder-se-ia, se pudéssemos falar de um Brasil. E podemos? Em que é que pensamos diante da palavra Brasil? “É como se o Brasil fosse um signo tão pleno de sentido que não pudesse ser apreendido por uma simples operação hermenêutica”,[1] escreveu o professor João Cezar de Castro Rocha, tendo uns versos de Drummond como ponto de partida: “Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil / Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”.[2] Uma única ideia de brasilidade é compatível com a multiplicidade do que se escreve hoje por escritores nascidos no Brasil? Há alguma característica da literatura hoje produzida por escritores brasileiros que permite sejam agrupadas várias obras sob a rubrica literatura brasileira? Alguma característica que não seja, evidentemente, o fato de serem escritas, na quase totalidade de seus caracteres, em português? Livramo-nos do problema se passarmos a utilizar o plural “literaturas brasileiras”, ou, melhor ainda, “literaturas do Brasil”?
Pode-se falar, hoje, de uma literatura brasileira? Ou de uma literatura brasileira? Poder-se-ia, se pudéssemos falar de um Brasil. E podemos? Em que é que pensamos diante da palavra Brasil? “É como se o Brasil fosse um signo tão pleno de sentido que não pudesse ser apreendido por uma simples operação hermenêutica”,[1] escreveu o professor João Cezar de Castro Rocha, tendo uns versos de Drummond como ponto de partida: “Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil / Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”.[2] Uma única ideia de brasilidade é compatível com a multiplicidade do que se escreve hoje por escritores nascidos no Brasil? Há alguma característica da literatura hoje produzida por escritores brasileiros que permite sejam agrupadas várias obras sob a rubrica literatura brasileira? Alguma característica que não seja, evidentemente, o fato de serem escritas, na quase totalidade de seus caracteres, em português? Livramo-nos do problema se passarmos a utilizar o plural “literaturas brasileiras”, ou, melhor ainda, “literaturas do Brasil”?
Ou a pluralização do problema o torna menor, ou
nos compromete menos. Como terminou o João Cezar de Castro Rocha o seu texto,
referindo-se à impossibilidade da escrita de histórias literárias e culturais,
“nunca daremos conta de um Brasil que não existe”.[3]
Ou falamos concentradamente de cada escritor, ou de cada livro de cada escritor
— o que pediria, dado o tamanho da população deste “novo Brasil literário”, um
artigo à parte —, ou falamos de um espírito, de um “jeito de ser”, desta
literatura brasileira contemporânea.
Falar do que nos é contemporâneo não é tarefa das
mais simples. As histórias de literatura aplicam a rubrica “tendências
contemporâneas” a tudo o que vem a seguir ao modernismo, quando não lançam mão
do polivalente “pós-moderno”, que segue, bravamente, dando conta de uma
multiplicidade conceitual e contextual sem precedentes. A reacção do romantismo
ao arcadismo e ao barroco, o realismo a fazer frente ao romantismo, o
simbolismo a tentar incorporar, na sua ideia de totalidade, tudo o que lhe
precedeu, o modernismo a rir do passado e, nas palavras de José Guilherme
Merquior, declarar uma verdadeira guerra aos “tempos modernos”[4]
— a tudo isso demos o nome de “novas tendências”; novas tendências que não se
conseguiam definir e nem catalogar. Até que, passado o tempo, lhes demos um
nome.
De qual contemporaneidade estamos falando quando
nos referimos à actual literatura brasileira? Dos últimos dez, vinte, trinta ou
quarenta anos? Muitos críticos literários preferem trabalhar com um ponto zero
a partir do qual começa esta “actualidade literária”; ponto que coincide com o
início do conceito de pós-modernidade — ou seja, a partir dos anos 70, quando a
literatura brasileira apresentou então características que a diferenciaram
radicalmente de tudo o que aconteceu antes.
De 1970 para cá ela ganhou novos temas, novos
narradores, novas sintaxes, gramáticas e personalidades. De 1970 para cá
passaram-se quarenta anos, mas os últimos dez nos podem parecer ainda mais singulares,
considerando-se a presença quotidiana da Internet
e do fenómeno dos blogs — dois
elementos importantes que entram na cena literária, seja como simples veículos
difusores, seja como elementos intrínsecos à história narrada.
O texto “Ficção brasileira contemporânea:
assimilação ou resistência?”,[5]
da professora Tânia Pellegrini, apresenta uma rápida biografia do pós-moderno e
articula-a com os traços mais salientes desta ficção brasileira que vem
explodindo desde a década de 70. O famoso ensaio do egípcio Ihab Hassan, POSTmodernISM: a Paracritical Bibliography,
de 1971, ampliou a noção de pós-moderno aos demais campos da arte e ainda à
tecnologia, mas não soube precisar se ganharia o status de um fenómeno social ou
ficaria restrito a uma tendência artística. Segundo Merquior, num artigo de
1985, o ensaio de Hassan é “uma obra-prima de indefinição conceitual sobre a
‘forma em desaparição’ da ‘literatura da fragmentação’”.[6]
A crítica de Merquior, hoje, passados 24 anos, talvez soasse como nada mais que
uma implicância, e a indefinição conceitual de Hassan, como nada mais que um
sintoma do que viria.
Outros textos, mais tarde, como o de Charles
Jenks, Language of Post-Modern
Architecture, publicado em 77, proclamam o estilo pós-moderno como próprio
de um mundo sem vanguardas nem inimigos. Jenks pensava na arquitectura, mas por
que não aplicar tudo aquilo à arquitectura das artes e das literaturas? Foi o
que se fez. Em 1979, François Lyotard publica La condicion postmoderne, associando a pós-modernidade à emergência
da sociedade pós-industrial e à sua complexa rede comunicacional. A linguagem
torna-se jogo linguístico destinado a funcionar não mais com as chamadas
grandes narrativas, mas com o pequeno relato. A grande narrativa torna-se sinónimo
de sistema totalizante e portanto univocal, ao passo que a narrativa curta e a
fragmentação passam a ser vistas como as únicas formas possíveis de fazer
circularem as alternativas, as vozes silenciadas e as rupturas. O resultado
sobre a produção e a recepção literárias não tardou a se fazer sentir.
No lugar dos romances históricos tradicionais,
abastecidos com farta documentação oriunda de rigorosa pesquisa e regidos por
uma linguagem formal, cuidadosa e à altura do grandioso projecto sobre o qual
se debruça o escritor — imbuído do desejo, ingénuo ou não, de efectivamente completar
uma lacuna mais historiográfica do que propriamente literária —, em lugar desses
vamos nos deparar, já na década de 80, com romances cuja construção se
relaciona com as informações da história oficial de forma lúdica, através da
reinterpretação do fato histórico, da mistura de géneros, da introdução de
elementos fantásticos e da harmoniosa convivência entre personagens reais e
fictícios.
Não apenas a ambientação e o projecto
argumentativo do texto literário sofrem alterações profundas. Também a
instância narrativa, o ponto de vista a partir do qual o leitor entra no texto,
vai mudar de cara. Pellegrini menciona o artigo de Silviano Santiago, num
número especial da Revista do Brasil,
de 1986, em que se vêem já as tentativas de se identificar quem é que começou a
contar a história desta ficção nova que vinha surgindo. O narrador pós-moderno
de Silviano Santiago encontra-se esvaziado das sua faculdade de intercambiar
experiências e revela-se como o oposto do narrador esboçado no início do famoso
ensaio de Walter Benjamin sobre Nikolai Leskov. Por esta altura o discurso da
crítica literária brasileira já arrebanhou para si o pós-moderno como
instrumento de análise da nova ficção brasileira que surgia.
Não se trata apenas de flagrarmos, no espírito da
prosa contemporânea, uma impotência do narrar, uma raquítica presença narrativa
e uma evidente falta de ciência do que se está a passar na história — aspectos
que se contrapõem à velha trilogia da omnipotência, omnipresença e omnisciência
do narrador clássico. Há também, na postura do narrador contemporâneo, além de
uma constante e intransitiva desconfiança, o que poderíamos chamar de perda do
altruísmo narrativo. Para que se dar ao trabalho de narrar, senão por um objectivo
muito preciso e por um interesse, em causa própria, muito bem estabelecido?
Está fundada a desconfiança narrativa; está criado o narrador duvidante.
E está criado também o
escritor participante, que se mexe nas sombras e vai para as páginas sob a pele
de si mesmo — e cada vez mais sob a pele de si mesmo, num movimento, hoje,
francamente oposto àquele da ideia da morte do autor, de Roland Barthes. Não
faço aqui a distinção entre autor e escritor, porque, para este caso, a
distinção não tem produtividade. Na cena contemporânea, os papéis do escritor e
do autor voltaram a colar-se. Disse Barthes que “a escritura é a destruição de
toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, (…) de onde foge o nosso
sujeito, o branco-e-preto onde vem a se perder toda identidade, a começar pela
do corpo que escreve”.[7]
Em outras palavras, a personalidade do autor pode vir a se apagar diante de uma
voz mais forte e bem mais autorizada, qual seja, a do narrador.
Já não mais. E refiro
aqui, para ilustrar o ponto, o que disse há pouco o escritor José Saramago
acerca do crime perfeito cometido por Barthes, que praticamente matou o autor
com belas e brilhantes facadas teóricas. O escritor português, por sua própria
conta e risco, recoloca o autor no centro do cenário narrativo, e em posição
protagonista. Em seu artigo “O autor como narrador”, que começa com um encenado
e bobamente irónico pedido de desculpas por estar ele, “um simples prático da
literatura”, a aventurar-se nas estranhas terras da teoria literária; terras
onde se falam línguas que apenas “vagas semelhanças guardam ainda com a
linguagem comum”, Saramago aponta o dedo para a ideia da “morte do autor” e a
chama de absurda e perigosa, vendo com temor a consequência imediata desse
sumiço: o descomprometimento compulsório do autor e seu pensamento, reduzidos a
“um papel de perigosa secundaridade na compreensão complexiva da obra”.[8]
O que vem a seguir, retornando à breve biografia
do pós-moderno montada por Pellegrini, é o texto de Fredric Jameson, publicado
no Brasil em 1985: “Pós-modernidade e sociedade de consumo”, onde vai além de
considerações estéticas e penetra no universo económico da nova ordem mundial.
O pós-moderno torna-se agora, mais que um estado de espírito, um conceito de
periodização relacionado ao capitalismo tardio. Neste capitalismo tardio à
Jameson, a cultura está atrelada à economia, vale dizer, ao dinheiro, de um
modo como nunca antes havia estado.
A partir deste ponto o pós-moderno inicia a fase
dois do seu projecto de recriação do mundo, que podemos chamar de a fase
caleidoscópico-desenraizante. Através do que Jean Baudrillard chamou, inspirado
por Borges (haverá algo mais pós-moderno do que o modernismo de Borges?), de simulacro, o pós-moderno desenraíza-se
do mundo referencial até ao ponto de já não mais ser possível encontrar o
referente perdido, que se vai para sempre e deixa no posto o simulacro em seu
habitat por excelência: a televisão e todas as suas variantes contemporâneas, que
transformam a psique humana e criam uma nova subjectividade. Estamos diante do
personagem mais recorrente da ficção contemporânea: o sujeito sem passado e sem
futuro, aprisionado no presente, estrangeiro em seu país e em si mesmo.
Se olhamos retrospectivamente para o que vem
constituindo a narrativa brasileira dos últimos quarenta anos: seus temas — a
solidão, o descompasso de seus personagens, a falta de comunicação, as drogas,
a violência, a Sida —; seus ambientes — a cidade grande inchada, os
apartamentos conjugados, as favelas, os asilos e manicómios —; seus personagens
(nunca colectivos e, na sua maioria, todas as minorias desfavorecidas) — as
mulheres, os negros, os homossexuais, os traficantes —; seus jogos de linguagem;
seus paradoxos; seu bombardeamento de fronteiras entre ficção, depoimento e
realidade; sua intertextualidade; sua interdiscursividade; seu carácter de obra
aberta e texto inacabado; sua porosidade mediática e ainda a sua forte
autoreferencialidade, vemos nesta narrativa o nascimento e o desenvolvimento do
espírito pós-moderno; vemo-lo inspirando e sendo por toda essa narrativa
inspirado, seja sob a forma de um alinhamento, seja sob a de um combate.
[1] “‘Nenhum Brasil existe’: poesia como
história cultural”, in Nenhum Brasil existe:
pequena enciclopédia, Rio de Janeiro, TopBooks e UniverCidade Editora, 2003,
p. 18.
[2]
Carlos Drummond de Andrade, “Hino Nacional”, citado por João Cezar de Castro
Rocha, cit., p. 17.
[3] “‘Nenhum Brasil existe’: poesia como
história cultural”, cit., p. 31.
[4]
“Aranha e abelha: para uma crítica da ideologia pós moderna”, in Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e
literatura, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, p. 397-398.
[5] “Ficção
brasileira contemporânea: assimilação ou resistência?”. Texto apresentado no Simpósio Internacional: 500 anos de
Descobertas Literárias, de 29 de Março a 2 de Abril de 2000, na
Universidade de Brasília.
[6] “Aranha e abelha”, cit., p. 396.
[8] “O
autor como narrador”, Revista Cult,
São Paulo, ano II, nº 17, p. 25-29.
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