5. "Palavras cruzadas” (“A
arte de ouvir – e pedir mais”), Revista
Lilica and Tigor, São Paulo, jun. 2011 (data aproximada).
Sim, das coisas mais divertidas quando saio um bocadinho aqui da
minha vida lisboeta e dou um pulo no Rio de Janeiro é entrar num táxi com a
Alice e a Clara, as minhas duas miúdas, de 9 e 4 anos, e deixá-las falar; é
entrar num elevador cheio e deixá-las falar; numa fila longa, e deixá-las
falar. É deixá-las falar.
A Alice, que veio para Portugal com dois anos, é já uma
portuguesinha, e a Clara, que nasceu cá, mais ainda. A entonação e o
vocabulário portugueses só não ficam encantadores quando temos à frente um
português careca, bigodudo e barrigudo, com o conhecido e insubstituível lápis-atrás-da-orelha,
e a cheirar a peixe, a jornal, carne de porco e bacalhau, e a dizer “pá!” a
cada três frases, “pois” para cada pergunta e “se calhar” a cada minuto. Quando
temos duas menininhas tão-lindas-que-chega-até-a-dar-nervoso-de-tão-lindas, a
vontade é de ouvir quieto, sorrir e pedir mais. (Esta apreciação estética
acerca das minhas filhas é isenta, posso garantir-vos.)
As meninas e eu entramos no táxi. Sem querer bati com a porta no
braço da Alice, e ela: “Ó, papá, magoaste-me!”. Eu disse: “Hã?”, e ela: “Com a
porta. Magoaste-me com a porta do carro!”. A Clarinha, para ela: “A culpa é
tua! Foste parva!”. “Não se dizem nomes às pessoas”, rebate a Alice. “É feio!” “Portem-se
bem!”, digo às duas. O motorista, diante daquela discussão, arqueia as
sobrancelhas, tem vontade de rir mas ouve quieto, e depois apenas sorri. E pede
mais.
Entramos num elevador cheio de gente séria e muda. A Clarinha, olhando
para cima, pergunta-me: “Papá, estou a portar-me bem? Vou ganhar um rebuçado
hoje, como prometeste?”. E todos no elevador se mexem e sorriem. E eu, para
puxar mais falas: “Disseste o quê, filha? Não percebi”. E a Alice para mim:
“Não percebeste?”, e em seguida para a irmã, sob o total silêncio sorridente do
grupo à volta: “Deixa estar, mana. O papá hoje está mesmo despistado! Estás a
portar-te muito bem, e vais ganhar o teu rebuçado, sim. O papá não falta com a
palavra”. Muitos sorriem, e alguns pedem mais.
“Papá, esta bicha não anda!”, diz-me a Alice, passados cinco
minutos na fila da pipoca para o cinema. Os pais e as crianças à frente
viram-se e nos deitam olhos curiosos. A Clarinha aproveita: “Papá, os miúdos
aqui no Brasil não têm rabinho, pois não?”. As crianças atrás de nós viram-se, riem
e apontam. “Não, filha. Eles têm bundinha,
ou bum-bum.” “Pois eu prefiro ter
rabinho do que bundinha”, diz ela, muito séria. Risadas por todo lado, e a
Clarinha, que não gosta que riam dela, revida: “Tem piada…”. “O que é que tem
piada, filha?” “Como os miúdos aqui no Brasil falam papá e mamã.” “Como é que
falam?”, pergunto às duas. E elas dizem, com uma entonação brasileira, alto o
suficiente para serem ouvidas e olhando para as crianças à volta com ares
desafiantes: “Paiê! Manhê!”, e desatam a rir. Mais risadas
por todo lado. E a Alice, para todos, num ímpeto de desinibição: “O que é que se
passa convosco?”. Diante daquele convosco
dito por uma miúda de nove anos, os adultos ao nosso redor puxam conversa,
sempre sorrindo, e pedem mais. E nós? Nós damos mais.
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